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A independência do poder judiciário no Islão

Coord. por: M. Yiossuf Mohamed Adamgy
in Editorial da Revista Al Furqán, nº. 163, de Maio/Junho.2008

Prezados Irmãos, Assalamu Alaikum:

O conceito da independência do poder judiciário é tão antigo quanto o Islão.

Muitos, muitos séculos antes de o Ocidente começar a teorizar este conceito, os tribunais do Islão actuavam com independência face ao poder executivo. Com efeito, este conceito tem base no mandamento do Alcorão relativo à justiça. O Nobre Alcorão ordena o seguinte:

Ó gente de Imán! (Fé) Estabelecei a justiça, testemunhai Allah mesmo que tenhais de ir contra vós próprios, os vossos pais ou familiares. Seja o homem rico ou pobre, sabei que Allah está perto de ambos; por isso, não deveis seguir os vossos desejos no que respeita à aplicação da justiça. (Surah Nisaa, Aayat 135)

Os governantes do Islão (os Khulafa e os Sultões) demonstraram na prática a independência do Sistema Judicial Islâmico. Para além dos Khulafa-e-Ráchidin, até os reis e sultões mundanos aplicaram o princípio da justiça. Os poderosos governantes do Islão submetiam-se, de imediato, à convocatória do Qádhi (juiz) e, sem hesitar, enfrentavam o julgamento exactamente da mesma forma que os cidadãos comuns. O episódio que de seguida relato ilustra o Sistema Judicial Islâmico bem como a independência gozada pelo poder judicial desde as origens mais incipientes do Islão.

HADHRAT UMAR (r.a.)

Hadhrat Umar (radhiyallahu an-hu = que Allah esteja satisfeito com ele) é uma figura conhecida até pelos não-muçulmanos. Os impérios romano e persa, as duas superpotências da época, foram derrotados por Hadhrat Umar (r.a). Na verdade, uma mera referência ao seu nome causava apreensão aos imperadores e reis.

A casa de Hadhrat Abbaas (radhiyallahu an-hu), o tio paterno de Rassulullah [Mensageiro de Deus] (sallallahu alayhi wasallam) era contígua à Maçjid-e-Na-bawi (Mesquita do Profeta). A água da goteira pingava para a Maçjid, causando transtorno aos mussallis (crentes que faziam a oração). Umar (radhiyallahu an-hu) ordenou que a goteira fosse retirada. E assim aconteceu, a goteira foi retirada enquanto Hadhrat Abbaas se encontrava ausente.

O TRIBUNAL

No seu regresso a Medina, quando percebeu o que tinha acontecido, Hadhrat Abbaas (radhiyallahu an-hu) ficou furioso. Apressou-se a ir ao tribunal de Qádhi e apresentou queixa pelo comportamento de Amirul Muminin, Hadhrat Umar (radhiyallahu an-hu).

Hadhrat Ubay Bin Ka’b (radhiyallahu an-hu) era o Chefe dos Qádhi, que, de imediato, convocou Hadhrat Umar (r.a.) ao Tribunal, a fim de res- ponder à queixa apresentada. No dia marcado, Hadhrat Umar, o Governante do Império Islâmico, compareceu no Tribunal do Qádhi, dando provas de profunda humildade e simplicidade. Hadhrat Umar (radhiyallahu an-hu) teve inclusivamente de esperar durante algum tempo no exterior do Tribunal, devi- do aos outros compromissos do Qádhi.

O JULGAMENTO

Hadhrat Umar (radhiyallahu an-hu) foi finalmente chamado a entrar. Quando entrou, tentou dizer algo, mas o Qádhi ordenou-lhe, que se mantivesse calado, nestes termos: “O queixoso tem o direito de falar e de apresentar o seu caso. Mantenha-se em silêncio.”

Hadhrat Abbaas afirmou: “A minha casa foi sempre contígua à Maçjid Nabawi, quer no tempo de Rassulullah (sallallahu alayhi wasallam), quer durante o Califado de Hadhrat Abu Bakr (radhiyallahu an-hu). Mas, agora, o Ami-ul Muminin demoliu a goteira e deitou-a fora. Eu fiquei bastante aborrecido com este comportamento e, por isso, quero justiça.”

O Qádhi perguntou: “Ó Amirul Muminin, o que tem a dizer?”

Hadhrat Umar afirmou então: “Retirei a goteira, é um facto. Sou o responsável por esse acto.”

O Qádhi pôs então a Hadhrat Umar a seguinte questão: “Devia abster-se de interferir de forma tão injusta na casa de outra pessoa e sem o seu consentimento. Porque é que o fez?”

Hadhrat Umar respondeu o seguinte: “Excelência, por vezes a água da goteira pingava para a Maçjid, o que causava inconvenientes e preocupações aos mussallis. Foi por essa razão que ordenei que fosse retirada. Assim sendo, considero ter agido correctamente e não creio ter cometido nenhum crime.”

O Qádhi perguntou a Hadhrat Abbaas: “O que tem a dizer em resposta a isto?”

Hadhrat Abbaas respondeu: “Meritíssimo, foi o próprio Rassulullah (sallallahu alyhi wassallam) quem demarcou as fundações da minha casa com a sua própria faca. Depois de a casa estar acabada, Rassulullah (sallallahu alyhi wassallam) ordenou que a goteira fosse construída exactamente no sítio onde estava. Rassulullah (sallallahu alyhi wasallam) disse-me para eu subir aos seus abençoados ombros e instalar a goteira. Eu recusei-me, movido pelo respeito; no entanto, Rassulullah (sallallahu alyhi wasallam) insistiu com veemência. Assim, acabei por condescender. Subi aos abençoados ombros de Rassulullah (sallallahu alyhi wasallam) e agi conforme ele ordenava: coloquei a goteira precisamente na posição de onde o Amirul Muminin ordenou que fosse retirada.

O Qádhi perguntou-lhe então: “Tem alguma testemunha ocular que confirme o que diz?”

Hadhrat Abbaas respondeu: “Não tenho apenas uma ou duas, tenho várias.”

O Qádhi afirmou: “Se as apresentar agora, este assunto pode ficar resolvido.”

AS TESTEMUNHAS

Hadhrat Abbaas (radhiyallahu an-hu) saiu e passado algum tempo voltou a entrar com várias testemunhas pertencentes ao povo de Ansar. Todas essas testemunhas prestaram depoimento e revelaram ser testemunhas oculares do sucedido.

Entretanto, o influente governante à face da terra, Hadhrat Umar (radhiyallahu an-hu) permanecia humildemente com os olhos postos no chão. Finalmente, disse o seguinte:

“Ó Abul Fadhl (Hadhrat Abbaas)! Perdoa-me, por Allah! Desconhecia em absoluto que fora o próprio Rassulullah (sallallahu alayhi wasallam) quem ordenou a construção da goteira naquela posição. Se soubesse, nem por causa justa ordenaria a sua remoção. Afinal, que direito tenho eu de retirar a go- teira cuja colocação foi ordenada pelo próprio Mensageiro de Allah (sallallahu alayhi wasallam)?”

REPARAÇÃO

Hadhrat Umar (r.a.) afirmou o seguinte: “A justiça ficará reposta se subir aos meus ombros e recolocar a goteira na sua posição original.”

O Qádhi afirmou então o seguinte: “Sim, Amirul Muminin, essa é a exigência da justiça: é isso que deve fazer.”

Passado pouco tempo, o povo viu o poderoso Califa, que derrotara o Qaisar e Kisra (os imperadores de Roma e da Pérsia), junto ao muro, com Hadhrat Abbaas (r.a.) sobre os seus ombros, recolocando a goteira na sua posição inicial.

Terminado o trabalho da reposição da goteira, Hadhrat Abbaas (r.a.) saiu de cima dos ombros de Hadhrat Umar (r.a.) e afirmou:

“Ó Amirul Muminin, o que aqui aconteceu foi a restituição dos meus direitos! Agora que, justamente, alcancei os meus intentos graças ao vosso amor pela justiça, peço perdão pelo desrespeito que essa restituição implicou. Com toda a abnegação, entrego a minha casa no Caminho de Allah Taala como uma Waqf (doação). Tendes o direito de a demolir e de incluir o terreno na Maçjid. Que Allha Ta’ala aceite a minha doação.”

Este era o conceito de justiça que os Companheiros do Profeta (s.a.w.) praticavam. Não foi em vão que o Profeta (s.a.w.) disse: “A parecença dos meus Companheiros (Sahabah) é como a das estrelas (guias). Qualquer que sigais, sereis por ele guiado (no caminho certo).”

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