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A minha Economia

CONVERSA EDITADA POR LÚCIA CRESPO
In Jornal de Negócios | Sexta-Feira, 2 de Setembro de 2011 | Weekend, págs. 20 | 21

Ainda não é uma da tarde, sexta-feira, 26 de Agosto. Mulheres negras com vestes coloridas, guineenses, sobretudo guineenses. Homens de túnicas compridas, brancas, beges. Às duas da tarde há oração na Mesquita de Lisboa, uma das cinco preces diárias por altura do Ramadão, este ano em Agosto. O calendário lunar assim o ditou. Está sol e quando está sol e muita gente, o solo da oração estende-se até ao pátio interno da Mesquita. M. Yiossuf Mohamed Adamgy está lá. Veio de Moçambique há 35 anos e, desde então, já escreveu 200 livros e livrinhos sobre o véu, a mulher no Islão, a carne de porco, o terrorismo, a liberdade religiosa. “Sobre a usura” – a usura na Bíblia e no Alcorão é o título do seu último livro. Algumas das suas obras estiveram expostas na feira do livro islâmica em Portugal, que terminou na semana passada

O Ramadão é o mês em que nós carregamos as nossas baterias espirituais para o resto do ano. Acordo a um quarto para as cinco, faço a minha refeição de alvorada, antes do nascer do sol. Não podemos comer nada até ao pôr-do-sol, nem sequer beber água. Nada. Não é fácil, mas olhe que o ser humano tem uma capacidade de adaptação incrível. Pior é para os indivíduos que trabalham nas obras, transpiram, devem ter uma dificuldade tremenda. Há pessoas que até tiram férias nesta altura para se dedicar às orações e às recitações. Mas nos países islâmicos ninguém deixa de trabalhar, o jejum tem de ser feito normalmente, e isso, sim, é que é o sacrifício, o sentir a fome daqueles que não têm casa ou pousio.

Neste mês, as pessoas são muito caridosas, distribuem a esmola, o ‘zakat’. Cada um faz as contas ao dinheiro que lhes sobrou. Sobre essa quantia há uma taxa de 2,5%. É a própria pessoa que, de acordo com a sua consciência, retira esse montante para dar a quem necessita. Aqui, na Mesquita, há uma comissão que recebe a quantia ou o rancho, um cabaz com alimentos. Mas há esmolas durante todo ano. Temos viúvas, doentes, enfim, pessoas que não têm rendimentos, que até recebem uma mensalidade. Este ano, as pessoas deram menos dinheiro, mas há mais gente a pedir, inclusivamente pessoas não muçulmanas. Nós damos. Na ruptura do jejum, durante o pôr-do-sol, aparecem 30 a 40 pessoas para comer. Esperam que as orações acabem e acompanham-nos até ao refeitório. Também aparecem indivíduos da classe média a pedir, mas a comissão sonda a capacidade económica para não ser enganada, porque já vieram pessoas com carros que não parecem ser de alguém necessitado.

A sociedade portuguesa é caridosa. Ainda há valores, um pingo de consciência, as pessoas dão o que podem, isso é humanismo. É bom, pois a sociedade, sobretudo no Ocidente, está a tornar-se muito materialista. A Europa já perdeu os valores todos. Morais, sociais. E agora chega a parte económica. Eu sou do tempo em que, quando estudava no liceu, era obrigado a ir às aulas de Religião e Moral. Aprendi o Pai Nosso e a Avé Maria e não me fez mal. Eu tinha a minha religião, mas não me sentia revoltado. Soube filtrar. Vim de Moçambique há 35 anos e as minhas filhas já nasceram cá. Quando estavam no liceu, trouxeram-me um papel para assinar a isenção das aulas da Religião e Moral. Não assinei. ‘Mas nem eles, que são cristãos, vão…’, protestaram. Enquanto estiveram sob a minha alçada foram. As aulas de moral davam ao aluno um certo valor para ter escrúpulos, para respeitar os pais, os professores, para ajudar uma velha que vai na rua. Hoje não há isso. É importante ensinar as bases morais do ser humano, sem impingir esta ou aquela religião, sem a Avé Maria, mas ensinar o mútuo respeito, a coexistência entre as várias culturas.

A religião tem vindo, pouco a pouco, a perder-se. No Ocidente perdeu-se mais depressa, embora haja muita gente na Europa a abraçar o Islão, especialmente depois do 11 de Setembro, o que é curioso. E falo da classe intelectual, jornalistas, médicos…Talvez as pessoas estejam à procura de alguma coisa, têm uma espécie de fome espiritual. Aqui, em Portugal, também há pessoas que se convertem, mas menos que em Espanha e França. Somos um país mais pequeno…A verdade é que a comunidade islâmica está a diminuir em Portugal – seremos cerca de 40 mil, chegámos a ser quase 60 mil há sete anos – muita gente tirou bilhete daqui, não há trabalho. Voltaram para Moçambique ou preferem Espanha, França, Inglaterra, Bélgica, embora a crise seja geral. Até há pessoas a irem para Angola. Vão para onde conseguem fazer a vida.

Hoje as cúpulas das religiões tentam compreender-se mutuamente, dialogar, sobretudo depois do 11 de Setembro. Tirando a tragédia, condenável, que muito me chocou, acho que, de alguma forma, os acontecimentos serviram para os muçulmanos reflectirem melhor sobre a sua própria religião, pois também eram ignorantes ou tinham tradições um pouco deturpadas, como a defesa de que a mulher não podia trabalhar. O Alcorão dá toda a liberdade, ao homem e à mulher. E, por outro lado, os não-muçulmanos começaram a estudar que bicho era o Islão. Ao longo destes 10 anos, publiquei grandes e pequenos livrinhos sobre o véu, a mulher no Islão, a carne de porco, o terrorismo, a liberdade religiosa. Isto porque, após os atentados, parecia que o terrorismo estava ligado ao Islão, infelizmente…

Acabei de publicar um livro sobre a usura, os juros sobre juros. Todas as religiões condenam a usura. A própria Bíblia também a proíbe, no entanto o Vaticano foi muito benevolente nesse tema, deixou passar. Hoje em dia há muita usura, isso que o FMI está a fazer é um crime, que culpa tem o povo de o Estado ter gasto mal o dinheiro? Nós é que temos de pagar? Nos países islâmicos existe menos usura e se, por vezes, existe mais é porque esses países foram contaminados… A grande maioria do mundo islâmico chegou a ser colónia do Ocidente. Mas, em geral, há menos usura. Temos a banca islâmica, através da qual, quando há empréstimo, esse deve dar lucros a ambos, quer a quem empresta, quer a quem pede emprestado. E a perda também é dividida. Aqui, nesta banca, a pessoa que empresta tem os juros assegurados. E veja, os bancos islâmicos não sofreram tanto como os bancos do Ocidente.

O mundo islâmico sofreu de duas coisas, de colonialismo e de ditadura. Há o povo a viver mal e, eles, os líderes, com fortunas nos bancos da Suíça. (embora o povo da Líbia não vivesse mal, ninguém podia era falar, mas o cidadão líbio tinha casa do Estado, bolsas para estudar, até tinha uma conta no banco onde pingava uma percentagem dos lucros do petróleo, tornando-o, até, menos trabalhador) A ‘Primavera árabe’, mais tarde ou mais cedo, era inevitável. Qualquer opressão tem limites, há-de sempre chegar uma altura em que o povo se ergue. A situação persistiu até agora com a bênção e a benevolência do Ocidente, que apoiou essas ditaduras, quer queira quer não. Andou com o Kadhafi na mão. E, na Líbia, continua a haver manipulação. Acho que os rebeldes estão a ser apoiados pelo Ocidente porque há interesses e porque a América está a afundar- se e tem que ir procurar a algum lado. Costumo dizer que quero viver para ver a América a ser verdadeiramente democrática. A democracia não tem a liberdade, a igualdade e a fraternidade que a França proclamava. Cada um tem os seus interesses. O ser humano está a deixar de ser humano. Além disso, as democracias do Ocidente não podem ser implantadas naquelas ditaduras, não é à força que se impõe a democracia. Agora acordaram e querem pôr lá uma democracia de um dia para o outro…

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