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A Palavra Fiqh

Coord. Por: M. Yiossuf Adamgy, in revista islâmica portuguesa Al Furqán, nº. 178, de Novº./Dezº. 201

A palavra Fiqh significa, no Alcorão, “conhecimento profundo”, mas com o tempo adquiriu outro matiz, o de “conhecimento ordenado do Islão”.

Nem o Alcorão nem a Sunnah (conjunto de Ahadith ou tradições proféticas: ditos, actos e atitudes atribuídos ao Rassulullah [Mensageiro de Deus] (s.a.w.), que são tanto dados biográficos como “comentário” e “matização” do Alcorão, porque Muhammad [Maomé] (s.a.w.) era, como afirmava Aicha (r.a.): “o Alcorão caminhante”); não corpora jurídicos ou legislativos; é impossível, a partir do Alcorão e da Sunnah, regulamentar, definitivamente, a vida da comunidade. É preciso aplicar-lhes um método conforme o ensino de Muhammad (s.a.s.), que insistia na necessidade do Ijtihad ou sentido crítico, racional, que os faça válidos em cada circunstância de tempo e lugar. Isto permite à comunidade muçulmana uma grande agilidade e centrar os debates não em questões abstractas, mas na realidade da convivência necessária.

Isto gera no Islão o nascimento de muitas escolas ou correntes de Fiqh (às quais é dado o nome de “madzâhib”, plural de “madzhab”, caminho ou método, via pelo qual vamos), bem como grandes individualidades e atitudes pessoais independentes de qualquer escola. Esta diversidade de opiniões não vai em detrimento da unidade do Islão, mas, pelo contrário, é uma das suas características essenciais e um dos fundamentos que o definem. No Islão não existe nem pode existir uma “ortodoxia”; todas e cada uma dessas escolas são “opiniões”, e o muçulmano é convidado a aderir a alguma delas ou a subtrair-se, sempre a usar o Ijtihad e com uma atitude séria.

O Fiqh analisa a “exterioridade” do Islão, quer dizer, aborda o muçulmano segundo se relaciona “formalmente” com Allah (Deus), consigo próprio e com os outros. O versado em Fiqh (alfaqih) responde ao ‘como?’ do Islão. Ao ‘porquê?’ contesta outra arte ou ciência (o Sufismo ou Tassawuf), de que resultam também inumeráveis escolas, correntes e mestres. Fiqh e Sufismo não são antagónicos, como muitas vezes se quis ver, mas complementares.

O Fiqh é, portanto, um importante aspecto do Islão; o Fiqh permite a prática do Islão e a sua concretização como realidade comunitária. Podemos esquematizar e afirmar que dois são os seus temas fundamentais: a forma da transcendência (‘ibada) e a transacção (mu’amala).

Quanto ao primeiro, tem uma única fonte: a revelação. O Alcorão e a Sunnah detalham os pormenores, não havendo nestas questões praticamente divergências entre os muçulmanos. Isto é importante porque é a base da sua coesão.

Nos aspectos que concernem à vida quotidiana, às relações entre os homens e as comunidades, a fonte é essencialmente a mesma, mas, na sua concretização, a atitude do Mensageiro de Deus (s.a.w.) era diferente. Nestas questões é fundamental a consulta e a assembleia (Shura). E assim sabemos que, quando os companheiros do Mensageiro de Deus (s.a.w.) não concordavam com algumas opiniões, ele (s.a.w.) submetia-se à decisão da maioria, como aconteceu em Badr e Uhud. Quer dizer, nestes assuntos, o Alcorão é, na maioria das vezes, genérico, ensinando a necessidade da justiça, a solidariedade, a tolerância, etc., e propondo alguns modelos. A primeira comunidade muçulmana tornou real essas necessidades de uma determinada maneira (Sunnah ou tradição que deve ser respeitada). O Alcorão e o exemplo dessa comunidade servem de inspiração ao resto dos muçulmanos.

Existe, entre os alfaquis, consenso sobre alguns pontos necessários para tornar ágil e positivo o Fiqh; são os seguintes:

  1. Realismo, não procurar soluções a problemas não colocados. Diz o Alcorão: ” Ó vós que credes! Não pergunteis acerca de coisas que, se vos forem dadas a conhecer, perturbar-vos-iam’ (5:101). Sabemos que o Alcorão era revelado sempre que uma situação exigia uma resposta, e não ao contrário. Também sabemos, por Ahadith, que Muhammad (s.a.w.) não gostava de perder tempo discutindo sobre soluções a problemas inexistentes.
  2. Agilidade, reprovando o peso na argumentação. Segundo um hadith, o Mensageiro de Deus (s.a.w.) disse: “Allah detesta tanto dizer e dizer, e perguntar em demasia, e mal gastar os bens”. E também disse noutro hadith: “Allah estabeleceu para vós obrigações, não as deveis desatender; pôs-vos limites, não os deveis transgredir; vedou-vos coisas, não as deveis violentar; e calou quanto a certos assuntos por Misericórdia a vós e por tolerância, e não por esquecimento; não deveis perguntar por elas”.
  3. Evitar, no possível, a discrepância e sobretudo a que pode motivar a ruptura na comunidade. Diz o Alcorão: “E esta é a vossa comunidade, uma comunidade” (23:52), “Preservai-vos, unindo-vos com o laço de Allah, todos vós, e não vos dividais” (8:46). “Com os que dividem o dîn e criam grupos antagónicos… com esses nada tens a ver” (6:159). “Não sejais como os que se dividiram e disputaram entre eles depois de ter-lhes sido mostradas as provas certas; a esses corresponde um imenso castigo” (3:105).
  4. A referência sempre é a revelação (o Alcorão e a Sunnah). Diz o Alcorão: “Se divergis em algo, recorrei a Allah e ao Seu Mensageiro” (4:59), “Que Allah decida sobre o que não concordais” (42:10).
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