História – 15/04/2011 – Autor: Fernando Báez* Versão portuguesa: Al Furqán
(Fonte: http://www.elciudadano.cl/2011/04/12/el-coran-un-libro-perseguido/?TB_iframe=true&height=500&width=940)
* (Fernando Báez é historiador e autor do livro “História Universal da Destruição dos Livros”)
“Ali onde queimam livros, acabam queimando pessoas… “
Em Agosto de 2010, os membros ortodoxos de uma pequena e desconhecida igreja cristã da Florida anunciaram, com alguma timidez inicial que rapidamente se converteu em ousadia, que pretendiam queimar milhares de exemplares do Alcorão. A sua intenção era transformar a data de 11 de Setembro, no dia Mundial da Destruição de qualquer obra Islâmica. Parecendo um objectivo pobre, os agentes da polícia pensaram que seria apenas só mais uma ameaça, até que conheceram Terry Jones, pastor que conduzia esta fanática iniciativa.
Jones, dotado de farto bigode, sobrancelhas cerradas, um olhar perdido e pouco eruditos conhecimentos bíblicos, despertou em alguns esse excêntrico sentimento que só o ressentimento e o desejo de vingança podem nutrir, e esta sua persona enquadrou-se perfeitamente na encarnação desse personagem odiado, xenófobo e radical nas suas próprias ambiguidades. Como uma versão controversa dirigida por Quentin Tarantino do polémico Pat Robertson.
Para se manter actualizado através dos novos meios de Comunicação Social, a seita de Jones criou um Link no Facebook, com o nome de ‘International Burn a Quran Day’ onde convidava os seus fiéis a colaborar na fogueira que acenderia nesse dia, em Gainesville, entre as 6 e as 9 horas da tarde. O grupo trouxe um contentor pintado de branco, com letras vermelhas, onde se repetia a mensagem e, como se não bastasse, foram criados cartazes de propaganda, não se escondendo a presença de armas e símbolos nefastos.
O público, céptico e habituado a discursos intermináveis sobre o fim do mundo, não o levou a sério até à reacção oficial de líderes políticos, religiosos e militares.
Um reverendo anónimo como Jones foi então chamado por Robert Gates, director da CIA; pelo mítico General David Petraeus, que comanda as tropas no Afeganistão; e ainda por uma sucessão interminável de policias locais e federais. A 11 de Setembro, data marcada, acabou por não acontecer nada, mas Jones não se rendeu, e a 20 de Março de 2011 decidiu voltar à sua missão, ordenando ao seu assistente que queimasse esse livro que considerava prejudicial para o mundo. Dois dias mais tarde, a notícia provocou a explosão de um edifício da ONU, que fez 12 mortos. Sabe-se hoje que, desde esta “fogueira americana”, já aconteceram pelo menos mais oito atentados com explosivos.
Esta é, provavelmente, uma história patética, no entanto revela a sua tragédia intrínseca no número incontável de vezes que este incidente já ocorreu com consequências amargas. Heinrich Heine, por exemplo, escreveu em Almansor (1821): “Ali onde queimam livros, acabam queimando homens”. A frase é bastante citada, o que por acaso se deixa esquecido de parte (não sei se por má-fé), é que se refere efectivamente à queima do Alcorão na cidade de Granada.
Condenado à fogueira histórica
Em 1500, um austero padre, chamado Francisco Jiménez de Cisneros, ordenou aos seus fiéis que reunissem toda e qualquer edição de livros árabes, em especial do Alcorão, e decidiu que estes seriam submetidos à visão implacável das chamas. Mais de 5.000 volumes foram queimados. Mas este sacerdote, quiçá em singular acaso, passou para a história como o nobre fundador da Universidade de Alcalá.
Durante a captura de Tripoli, em 1109, os cruzados procuraram todos os exemplares possíveis do Alcorão para queimar. Acreditavam que esta era uma obra do mal e que merecia o fogo. Ainda assim, uma misteriosa edição de 1537 foi destruída por instrução directa do Papa. Até então acreditava-se que não havia restado nenhuma cópia, mas na verdade havia uma única no mundo, descoberta por Angela Nuovo, na Biblioteca dos Frades Menores de S. Michele, na Ilha de Isola, em Veneza. Este podia ser um dos livros mais raros da história.
A 11 de Junho de 1992 foi anunciada a execução de quatro pessoas na cidade santa de Mashhad, na província de Khorasan. Os seus nomes eram: Javad Ganjkhanlou, Golamhos-sein Pourshirzad, Ali Sadeqi e Hamid Javid. Todos eles foram detidos em Mashhad, no dia 30 de Maio de 1992, em consequência dos distúrbios ocorridos naquela cidade. Consideraram-se culpados e foram condenados por várias acusações, mas Ali Sadaqi foi ainda acusado de queimar milhares de exemplares do Alcorão, pois era ele o chefe no ataque contra o edifício da Organização da Propagação Islâmica, onde ardeu, em consequência, uma enorme biblioteca.
Acredita-se que entre 1992 e o fim da guerra, os sérvios danificaram cerca de 188 bibliotecas: 43 foram totalmente destruídas e 1.200 mesquitas foram devastadas, sendo esta uma contagem ainda incompleta. Milhares de exemplares do Alcorão foram desta forma purgados e assim desapareceram.
Em 1998, um livreiro francês, de cujo nome não se quer recordar a Comunicação Social Europeia, foi condenado a pena suspensa de dois anos por destruir livros Muçulmanos e Árabes numa Biblioteca Municipal em Paris. Este fanático escondia todos os livros Árabes que encontrava, e depois levava-os para casa, onde os queimava para que ninguém os pudesse ler.
Porquê destruir o Alcorão? Porquê tanto ódio para um Livro?
Numa tentativa de entender o que se passa, talvez se deva assinalar que este ataque responde ao significado cultural e religioso do que ali está escrito. O Islamismo, com 1.300 milhões de seguidores, transformou o mundo árabe com uma mensagem que se mantém bem viva: “Não há outra divindade senão Deus (ár. Allah), e Maomé (ár. Muhammad) é o Seu Profeta”. Conta a história que o anjo Gabriel revelou durante 23 anos uma série de regras a Maomé, que viriam a tomar forma de Livro no Alcorão. Um conjunto de 114 “suras” ou capítulos, com mais de 6.000 versículos. Com os anos esta obra, cujo nome alude à recitação assim efectuada pelo anjo, seria tornada sagrada e considerada de diferentes formas pelos Muçulmanos.
Basta dizer que é impossível recitar o Texto, sem que se seja purificado. O Livro é cuidadosamente envolto em seda ou em tela adornada, e é colocado numa posição elevada. A maior glória dos muçulmanos é a memorização destes textos. Os que o conseguem ganham o título de “Hafiz”.
Acredita-se que, recitando certa maneira, produz milagres. A perfeição da caligrafia com que é escrito pressupõe quase um acto piedoso, e antes de ser transcrito por Zhaid ibn Thabit, esteve presente em folhas de palmeira, ossos planificados de camelo, pedaços de madeira e pergaminho.
Não é possível que o leitor já tenha ouvido falar de um computador ou um carro sagrado, mas sabe (como soube Borges), de livros considerados sagrados. O livro torna-se para muitas sociedades, para além de um monumento à memória, uma manifestação divina de um espírito superior, como o põem em evidência os 56 túneis da montanha de Chiltan, na comunidade de Quetta, no Paquistão, que um grupo de servidores habita ainda hoje, para guardar um cemitério onde subsistem 70.000 bolsas que protegem exemplares danificados do Alcorão. Estes depósitos são chamados de Jabal-E-Noor-Ul-Quran.
E ainda, enquanto Livro Sagrado, o Alcorão toma paradoxalmente outra condição, ao ser um Livro perseguido enquanto símbolo. Os que hoje o queimam sabem o que fazem. Assim como os seus antecessores, tentam provocar o conflito religioso mais feroz do Séc. XXI entre o Ocidente e o Médio Oriente.