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América, América… Do conflito das civilizações ao choque das ignorâncias

Versão portuguesa de. M. Yiossuf Adamgy, publicada na revista Al Furqán, nº. 176, de Julho/Agosto.2010

26 de Agosto de 2010 – Fonte: Oumma

Aquando do seu discurso, no Cairo(1), o ano passado, Barack Obama pregava a reconciliação com o mundo muçulmano: ‘(…) os Estados Unidos e o mundo ocidental devem aprender a conhecer melhor o Islão. Aliás, se contabilizar-mos o número de Americanos muçulmanos, veremos que os Estados Unidos são um dos maiores países muçulmanos do planeta (…). O que procuro fazer consiste em criar um diálogo melhor para que o mundo muçulmano possa compreender melhor como os Estados Unidos, e em termos gerais o mundo ocidental, concebem determinados problemas difíceis, tais como o terrorismo ou a democracia’. Estas palavras, impregnadas de conciliação, tinham sido aclamadas pelos numerosos chefes de estado do mundo árabe-islâmico. Hoje, mais do que nunca, a questão das relações ‘normalizadas’ e ‘pacificadas’ com o Islão regressa, com vigor, à cena local americana. ‘Islam, islamic, Muslims…’ tornaram-se igualmente vocábulos com, muitas vezes, uma conotação negativa no País do Tio Sam, ao julgarmos pelas peripécias do Centro Cultural Islâmico de Nova Iorque. Quem não se lembra do projecto controverso de uma Mesquita a dois quarteirões do Ground Zero, onde se encontravam as torres gémeas destruídas no dia 11 de Setembro de 2001, que ultrapassou um obstáculo importante no início do mês de Agosto, com luz verde dada pela autarquia e com o apoio do Presidente da Câmara de Nova Iorque. Esta decisão muito controversa foi imediatamente assimilada a ‘um insulto à memória das vítimas’ pelos que se opunham ao projecto. Esta protestação geral transformou-se numa verdadeira campanha de descrédito das atitudes islamofóbicas: um autocarro exibindo, nos seus flancos, slogans hostis quanto à edificação de uma mesquita e de um centro cultural islâmico nas imediações de Ground Zero, fotografias de aviões despenhando-se contra o World Trade Center relembrando os atentados do 11 de Setembro…

Cartazes gigantescos ostentando a pergunta ‘Por quê aqui?’ (‘Why here?’), insistindo no ‘carácter provocador’ de um pedido legítimo, contudo garantido pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.(2)

Sabendo que o anunciante não é nada mais, nada menos do que o organismo SIOA (‘Stop Islamzation of America’, ‘Cessem a islamização da América’), é fácil imaginar que a Estátua da Liberdade tenha ficado transida de assombro nesse grande país onde nos é relembrado, frequentemente, que os direitos fundamentais de todos os cidadãos americanos, sem distinção, são imprescritíveis. A intervenção do Presidente americano e o seu posicionamento ao lado de Michael Bloomberg não acalmou, porém, os ardores dos detractores deste projecto. Perante os ataques constantes, o chefe do Executivo teve até de apresentar alguns esclarecimentos de modo a tranquilizar, nomeadamente, um determinado segmento desta América ultra conservadora que suspeita que este dissimule a sua confissão! (3)

Os detractores deste projecto, accionados pelas associações das famílias das vítimas do 11 de Setembro, e por Sarah Palin – a ex-candidata republicana à Vice-presidência -, reagiram com virulência de modo a interpelar a opinião americana e a denunciar o apoio da Casa Branca. O representante de Nova Iorque na Câmara Baixa do Congresso declarava, recentemente, na CNN, com alguma arrogância:

‘A comunidade muçulmana demonstra insensibilidade e falta de compaixão ao querer construir uma mesquita na sombra de Ground Zero. Infelizmente, o presidente cedeu ao que é politicamente correcto’, lamentou. ‘Embora a comunidade muçulmana tenha o direito de construir a mesquita, abusa deste direito, ofendendo, inutilmente, tantas pessoas que tanto sofreram. A boa escolha, moral, que o presidente Obama deveria ter feito, deveria ter sido exortar os dirigentes muçulmanos a respeitarem as famílias dos que morreram e a levarem a sua mesquita para longe de Ground Zero’.

Os defensores do projecto argumentam que a ‘Casa Córdoba’ ajudará a ultrapassar os este-reótipos negativos aos quais a comunidade da cidade continua a estar sujeita desde os atentados. Mas de nada vale, o tratamento mediático tende a dar a impressão que, afinal, a comunidade muçulmana americana representa uma entidade muito especial, com revindicações no limite da decência.

Além da deriva semântica, infelizmente recorrente desde o ‘Nine eleven’, este episódio conduzidos a um período sombrio da história recente dos Estados Unidos: a caça às bruxas sob uma ideologia institucionalizada: o macartis-mo.(4)

Recentemente, uma personalidade política afirmava:

‘Os EUA aplicaram, com sucesso, relativamente aos comunistas, uma política baseada na ‘repressão’ (Foster Dulles). Deveriam retomar esta filosofia no seu conflito contra o Islão em vez de se entregarem após complacências…'(5)

Incontestavelmente, o vento da intolerância sopra novamente do outro lado do Atlântico e os cerca de 7 milhões de cidadãos americanos(6) são elevados ao estatuto de testa-de-ferro, até mesmo responsáveis de uma ‘dor colectiva’, que levará algum tempo antes de ser exorcizada. Desde a tragédia do 11 de Setembro, os cidadãos americanos de confissão muçulmana habituaremos, infelizmente, a um dispositivo de segurança impressionante e às suas derivas liberticidas.(7)

‘Infelizmente, neste Estado como em todo o País, a islamofobia está a aumentar’, reconhecia Ramsey Kilic, porta-voz do Centro para as relações islâmico-americanas (CAIR).(8)

A este respeito, também não parece ser o momento para a conjuração dos demónios do ódio devido à organização de um ‘dia internacional para queimar o Alcorão’ na data de aniversário dos atentados do 11 de Setembro de 2001. Na origem desta iniciativa, um chamado Terry Jones, pastor de profissão, convida a reduzir a cinzas, na praça pública, o Livro Sagrado de um quarto da humanidade, o próprio fundamento da crença islâmica. Na realidade, trata-se, nada mais, nada menos, de combater ‘o demónio do Islão’, considerado por este homem da igreja como o mal incarnado. Do autor de ‘Islam is of the devil'(9), cultura do ódio, estigmatização e anátemas têm uma completa coerência com esta personalidade de ‘má fé’, em todos os sentidos do termo. À pergunta do apresentador da CNN, ‘Por que razão quer fazer isso a 1,5 mil milhões de pessoas no mundo inteiro?’, responderá sem equívocos:

‘O Islão e a Chariah são responsáveis pelo 11 de Setembro. Queimaremos os livros do Alcorão porque pensamos que já é tempo, para os Cristãos, para as igrejas, para os responsáveis políticos, que se levantem e digam: ‘Não, o Islão e a Chariah não são bem-vindos nos Estados Unidos’.

E cá estamos nós, desta forma, a ser levados para o âmago de determinadas práticas medievais e demais autos-de-fé organizados na época do Terceiro Reich!

Especifiquemos, além disso, que esta alma perdida e cegada pela aversão não é nada mais, nada menos, do que o líder da igreja Dove World Outreach Center (atingir um mundo de paz!): podemos ver que, nos dias de hoje, o ridículo já não mata. As teses huntingtonianas e demais slogans que pensávamos relegados ao esquecimento (‘o eixo do Bem contra o eixo do Mal’) reactivaram-se, desta forma, para ‘justificar’ um combate ‘justo’ destinado a salvar os valores da América. ‘Conflito das civilizações’ e demais ‘fim da história’ são reunidos para propagar outras construções teológicas que, no caso presente, se fundamentam no Islão (‘dar al islam, dar al kufr…’)(10). Assim, em conformidade com uma regra inalterável, os extremos alimentam-se uns dos outros.

Por outras palavras, esta visão cósmica maniqueísta tem a sua consagração no choque das ignorâncias!

O pastor Jones evoca numa ‘lista de argumentos’ 10 razões para ‘justificar’ a sua cruzada contra o Islão.(11) Num inventário ‘à Pré-vert’, o internauta encontrará aí propósitos insultuosos, contra verdades e outros delírios paranóicos (‘A vida e a mensagem de Muhammad não podem ser respeitadas’, ‘Muhammad não terá existido’, ‘A lei islâmica é de natureza totalitária (…) tem muitas semelhanças com o nazismo, o comunismo e o fascismo’, ‘O mundo sofre devido à influência demoníaca do Alcorão’, ‘O Islão representa uma arma do imperialismo árabe e suscita o colonialismo’ …). Daí a comparar o Islão à ‘Besta’ mencionada pelo Profeta Daniel, há apenas um passo… alegremente dado por determinadas ovelhas que privilegiam uma singular hermenêutica.(12) A tradição muçulmana relata que a ignorância é o maior inimigo do homem quando o Alcorão declara:

‘Dize: ‘Serão iguais, aqueles que sabem e aqueles que não sabem?’ Só os dotados de inteligência se lembram’.(13)

Podemos, razoavelmente, pensar que o interessado não é dotado desta última faculdade. Consciente das suas derivas, nas antípodas da fé cristã, a Associação Nacional dos Evangélicos (EU) quebrou os laços de solidariedade ao exigir a anulação do auto-de-fé e ao citar a Primeira Epístola do Apóstolo São Paulo aos Tessalonicenses. A Conferência Mundial das Religiões para a Paz (Religions for Peace, realizada em Nova Iorque) também condenou esta iniciativa perigosa para a coesão e o viver em conjunto.

Um maior cuidado e um dever de indignação impõem-se face aos pirómanos de qualquer espécie, apóstolos da divisão e do ódio e demais epígonos.

Património universal, a humanidade constrói–se na perseverança, razão e fé, na palavra parti-lhada e esforço de uma reflexão constantemente renovada. Viver em harmonia com o outro, com as suas diferenças, abrir-se ao outro na fraternidade e solidariedade, trabalhar para um melhor conhecimento mútuo, respondendo ao convite divino…:

‘Ó seres humanos! Na verdade, criámo-vos a partir de um homem e de uma mulher, e fizemo-vos nações e tribos para vos conhecerdes. O mais nobre de vós, perante Deus, é o mais temente. Na verdade, Deus é Sábio e Omnisciente’. (Alcorão, 49:13).

NOTAS:

  1. 19 de Junho de 2009
  2. A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América faz parte das dez emendas ratifi-cadas em 1791 e conhecidas colectivamente como a Declaração dos Direitos (Bill of Rights). Proíbe a adopção, por parte do Congresso dos Estados Unidos, de leis que limitem a liberdade de religião e de ex-pressão, a liberdade de imprensa ou o direito a reunir-se pacificamente.
  3. Uma sondagem realizada pelo Pew Research Center para o Washington Post, no dia 19/08/2010, revela que 20% dos Americanos pensam que o Presidente é muçulmano. Paralelamente, o número de Americanos que identificam correctamente Barack Obama como cristão descaiu para cerca de metade, em um ano, para 34%. A Casa Branca teve de apresentar um desmentido! Encontramos, nalguns meios de comunicação americanos e franceses, ‘Obama bin Laden’ caricaturado com uma barba e um turbante.
  4. O macartismo (ou McCarthyism) é um episódio pouco elogioso da história do país, conhecido igual-mente pelo nome de ‘Medo Vermelho’ (Red Scare) ou de ‘caça às bruxas’ (witch hunts). Estende-se de 1950, a aparição do Senador Joseph McCarthy na cena política americana, a 1954, o voto de censura contra McCarthy. Durante dois anos (1953-1954), a comissão presidida por McCarthy perseguiu eventuais agentes, militantes ou simpatizantes comunistas; tudo isto com o seu quinhão de derivas liberticidas.
  5. O governador do Tennessee questiona até a designação de religião no que diz respeito ao Islão que considera ser uma seita ou um partido político! Sobre este assunto, ler ‘Ron Ramsey: Tennessee Republican politician under fire in ‘Islam is a cult’ row’ in The Daily Telegraph publicado a 27/07/2010.
  6. Conforme o Council on American-Islamic Relations (CAIR).
  7. Consultar o estudo de Daniel Sabbagh, Segurança e liberdades nos Estados Unidos após o 11 de Setembro: uma descrição in Critique internationale nº 19 – Abril 2003, Centro de Estudos e Investigações Internacionais.
  8. Council on American-Islamic Relations
  9. Na sua introdução, podemos ler: ‘O Islão é satânico. Aprendei as verdades espirituais que levarão novamente a igreja cristão à posição revelada por Deus’.
  10. O mundo complexo globalizado no qual evoluímos não pode ser reduzido a estes dois campos ini-migos: ‘a residência do Islão’ versus ‘a residência do descrédito’.
  11. Consultar o sítio http://www.doveworld.org/-blog/ten-reasons-to-burn-a-koran
  12. O leitor motivado pela exegese pode consultar Daniel 7.19-27.
  13. Alcorão, 39:9.
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