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Atitudes ocidentais face ao Islão

in Mundo Islâmico – Esplendor de uma Fé, de Francis Robinson – Círculo de Leitores

Durante grande parte dos últimos 1300 anos, os Europeus têm considerado o Islão como uma ameaça. Os cristãos devotos sentiram-se ameaçados por uma fé que reconhecia um único Deus como Criador do universo, mas que negava a doutrina da Trindade, que aceitava Cristo como Profeta nascido de uma virgem, mas que negava a sua divindade e a crucificação; que acreditava num Dia do Juízo, no Céu e no Inferno, mas que parecia considerar o sexo como a principal recompensa no paraíso; que considerava a Bíblia cristã como palavra de Deus, mas que conferia a autoridade suprema a um Livro que parecia, em grande parte, negar os seus ensinamentos.

Os Estados cristãos sentiram-se ameaçados pelo êxito do poderio muçulmano, que penetrou no coração da França no século VIII, explorou as profundezas da Europa Central nos séculos XVI e XVII e, durante quase mil anos, patrulhou os flancos sul e leste da cristandade. Mesmo nos séculos XVIII e XIX, quando a sorte já tinha mudado e o poderio europeu se espalhara por todo o mundo, os muçulmanos eram ainda vistos como um perigo, desta vez para a segurança do império europeu.

Factos como este influenciaram as atitudes dos Europeus em relação ao mundo Islâmico, incentivando, entre outras coisas, um antagonismo duradouro e uma relutância em compreender a visão Islâmica da forma como a vida deve ser vivida: ao mesmo tempo, a civilização característica formada por esta visão era avaliada menos por si própria do que como contraste em relação ao qual se podia discernir e identidade europeia e medir as suas realizações.

Desde o início, as atitudes europeias foram fundamentalmente hostis. Os primeiros europeus, separados dos principais centros da civilização Islâmica pelo Império Bizantino, construíram uma imagem vaga e fantástica do Islão com base em fontes bizantinas: “era uma heresia derivada dos ensinamentos cristãos que o monge Bahira fora forçado a revelar a Maomé; o Corão fora entregue ao povo sobre os chifres de um touro bran- co; o Profeta era um feiticeiro cujo êxito se devia, em grande parte, à revelação, por ele proclamada, de que Deus aprovava a liberdade sexual”.

No entanto, a partir do início do século XII e da época da Primeira Cruzada, desenvolveu-se uma apreciação bastante mais séria, marcada pela tradução do Corão para latim e inglês, feita em 1143 pelo erudito inglês Robert de Ketton. Nos séculos XIII e XIV, os Europeus passaram a dar ênfase a dois aspectos do seu conceito mais esclarecido do Islão. O primeiro era até que ponto se podia dizer que o Corão corroborava o Evangelho. O segundo cuja lógica é duvidosa quando combinado com o primeiro era um ataque ao estatuto de Maomé como Profeta. Como podia um homem que não fizera milagres e que, segundo a lenda cristã, mentira e vivera em deboche ser profeta de Deus?

Dois aspectos desta mensagem foram destacados como alvos da polémica cristã; o suposto apoio dado pelo Islão ao uso da força (embora também os cristãos se lançassem em guerra santa) e a liberdade sexual de que se julgava gozarem os muçulmanos nesta vida, aliada ao êxtase sensual que lhes era prometido na próxima.

(…)A grande polémica medieval contra o Islão continuou a desenvolver-se durante o Renascimento e a Reforma e até ao século XVIII. Polidoro Virgílio, paradigma do saber histórico do Renascimento, limitou-se a repetir as acusações medievais: Maomé era um mágico, fora ensinado por um monge cristão, a sua heresia espalhara-se pela violência e pela promessa da aprovação divina em relação aos excessos sexuais, etc. … De entre as acusações destaca-se a de Maomé ser um impostor.

(…)A imagem do Profeta era de tal maneira negativa que se converteu em metáfora vigorosa a utilizar na polémica europeia. Assim, Lutero, colocava a Igreja Católica Romana ao lado da heresia de Maomé, considerando-a obra do Diabo na Cristandade, e Voltaire, atacando todas as religiões de revelação através do exemplo do Islão, fez cair o pano sobre a sua tragédia Le Fanatisme, ou Mahoumet le prophète, com um Maomé moribundo, pedindo ao seu sucessor que escondesse a sua maldade dos muçulmanos, para que não destruísse a sua fé.

A partir do século XVIII, contudo, a base para uma compreensão mais alargada do Islão começou a tomar forma. Na Europa, a revelação cristã estava a perder a sua vasta influência sobre os homens, e embora os velhos preconceitos ainda se mantivessem nos espíritos secularizados, esta mudança permitiu cada vez mais aos Europeus aperceberem-se de outras formas de percepção do mundo e até de sentirem afinidade com elas.

Ao mesmo tempo, a atitude das potências europeias para com as do Mundo Muçulmano ia passando do medo real da ameaça Otomana para uma igualdade confiante, à medida que tanto o Império Otomano como o Safévida e o Mogol entravam em declínio. Em finais do século XVIII, os Europeus sentiam-se inseguros de si nas relações com as potências muçulmanas, mudança esta simbolizada pela dramática invasão e ocupação do Egipto pelos Franceses, em 1799. Além disso, esta confiança continuou a crescer ao longo do século XIX quando Russos e Holandeses se aliaram aos Ingleses e Franceses para conseguirem exercer contrôle sobre os povos muçulmanos, até que em 1920, pelo Tratado de São Remo, mais de três quartos do mundo Muçulmano se encontrava sob domínio europeu. À medida que os Europeus se começavam a libertar da visão cristã medieval do mundo, que iam conhecendo mais muçulmanos e tendo um conhecimento mais aprofundado da sua civilização, tornou-se possível uma maior compreensão do Islão.

No entanto, entre as atitudes que se desenvolveram a partir do século XVIII, a velha atitude inflexível manteve a sua importância. Aproveitando as oportunidades proporcionadas pelo Império, os missionários Cristãos trabalharam como nunca entre os povos Muçulmanos, e embora alguns deles, como o bispo Heber e o Dr. Livingstone, tivessem alguma simpatia para com os Muçulmanos, outros voltavam facilmente a cair no padrão tradicional de preconceito cristão.

(…) De facto, os termos “muçulmano” e “fanático” tornaram-se quase sinónimos para os europeus que depararam com a resistência muçulmana em sítios tão distantes uns dos outros como a Argélia, a Índia e a Indonésia; durante a grande expansão europeia do século XIX, a imagem do Islão como religião “violenta” ganhou força, à medida que aumentava a resistência Muçulmana ao domínio europeu sobre o mundo: “A espada de Maomé e o Corão”, afirmava Sir William Muir, “são os mais persistentes inimigos da civilização, da liberdade e da verdade que o mundo jamais conheceu”.

Não existe maior contraste em relação à atitude de antagonismo dos cristãos do que o modo como Napoleão, filho do Iluminismo, assumiu uma postura muçulmana e manipulou as instituições muçulmanas, como parte dos seus desígnios imperiais no Egipto. “Respeito Deus, o seu Profeta e o Corão”, declarou ele ao desembarcar, em 1798, começando então a agir como governante muçulmano, prestando publicamente homenagem ao Profeta, começando as suas cartas aos potentados muçulmanos da zona com a biçmillah islâmica e conquistando os líderes religiosos e sociais da terra.

Assim, Napoleão, que, segundo Victor Hugo, “surgia perante as tribos deslumbradas como um Maomé ocidental”, exprimiu um pragmatismo face ao Islão de que os Europeus tinham até então sido, em larga medida, incapazes. Outros, ao procurarem, anos mais tarde, governar povos muçulmanos, visam a seguir o seu exemplo, embora nunca de forma tão notória. Não há dúvida de que havia também alguns laivos de romantismo na atitude de Napoleão face ao Islão, embora ele fosse o símbolo de uma época clássica recentemente triunfante. Ao adoptar uma identidade islâmica, Napoleão tentava, como fizeram os românticos, ultrapassar os limites clássicos da civilização do século XVIII, tal como o seu avanço em direcção ao Egipto e ao Oriente desafiava os do sistema de poder europeu. Ao fazê-lo, estava a explorar as possibilidades de um elemento cada vez mais importante da atitude europeia em relação ao mundo islâmico: a sua situação de mesa coberta de iguarias, onde se podia alimentar a imaginação europeia.

Durante cerca de cem anos, o apetite europeu fora já estimulado pelo número crescente de histórias de viajantes, especialmente por As Mil e Uma Noites, traduzida pela primeira vez por Galland, em 1704. Nesta obra encontrava-se uma sumptuosa colecção de califas, vizires, escravos génios, lâmpadas e acontecimentos fabulosos que constituiu uma grande parte do repositório de palavras e imagens utilizadas pelos Europeus para abarcar o mundo Islâmico.
De facto, para alguns esse mundo tornara-se num reino exótico no qual podiam explorar novas possibilidades, tal como o fez Montesquieu nas suas Cartas Persas, ou Mozart no seu Rapto do Serralho, ou Goethe no seu Divã Ocidental-Oriental; mas tornou-se igualmente num mundo em que os Europeus viajavam à procura de si próprios, vestindo-se com vestes estranhas e gosto pelas roupagens esvoaçantes e pelos galanteios árabes tem sido grande entre os Britânicos, desde Lady Hester Stanhope, que se vangloriava de ter entrado em Palmira pelo arco de triunfo e de ter montado a sua tenda no meio de milhares de beduínos, até T. E. Lawrence, que nunca parece ter-se recomposto da excitação provocada pelos árabes, camelos, areia e guerra no deserto.
Mas quer estes europeus tenham viajado pessoalmente ou apenas em imaginação, o facto é que se preocuparam mais em impôr a sua visão a este mundo do que em saborear a sua realidade, e mais em colocá-lo ao serviço dos seus próprios desígnios do que em apreciá-lo em si mesmo. É verdade que a sua atitude romântica trouxe algum avanço no conhecimento e compreensão do mundo Islâmico, acabando, no entanto, por criar uma nova barreira da imaginação que veio substituir uma parte importante da anterior barreira do preconceito.

Uma outra atitude, que se desenvolveu a partir das anteriores e ajudou a mantê-las de pé, foi o profundo sentimento de superioridade que foi crescendo com o império europeu. Abu Taleb Khan, um muçulmano indiano que visitou Londres em 1800, viu-se obrigado a tolerar um chorrilho de críticas intransigentes aos costumes muçulmanos, desde o hábito de comer com as mãos até às cerimónias realizadas pelos peregrinos em Meca. Este pressuposto de que os costumes europeus eram melhores teve eco junto daqueles que tinham eles próprios contactos com a sociedade muçulmana.

Uns anos mais tarde, alguns diplomatas franceses em Teerão, certos de que compreendiam os costumes nativos, queixavam-se da falta de honra ou vergonha dos Persas e da sua tendência para o exagero. Na Índia, quase três décadas mais tarde, Macaulay afirmava, na sua famosa nota sobre a educação, que, “como é geralmente reconhecido, não existem livros do saber muçulmano, nem do hindu, que mereçam ser comparados aos nossos”. Não admira que uma confiança tão ufana tivesse convencido o governo da Índia a esquecer, durante algum tempo, a base frágil em que acentava o domínio britânico e a apoiar moralmente os esforços para converter a população ao cristianismo: os Europeus estavam certos de serem ao mesmo tempo diferentes e melhores do que os muçulmanos. De facto, os Europeus governavam os muçulmanos por direito divino, enquanto estes, nas palavras do primeiro-ministro britânico Gladstone, eram “totalmente incapazes de estabelecer um governo bom ou tolerável sobre os povos cristãos civilizados”. (…)

Tal como seria de esperar, o estudo erudito do Islão foi reflexo das atitudes da sociedade em que se realizou. Simon Ockley, por exemplo, embora se preocupasse em apresentar os factos do desenvolvimento da civilização Islâmica e a sua relação com a Europa, não deixava de partilhar da visão comum na Europa de princípios do século XVIII, ou seja, de que o Islão era uma escandalosa heresia. Ernest Renan, especialista em filologia comparada e intérprete da Bíblia, considerava que o Islão, com a ênfase dada à autoridade avassaladora da palavra de Deus, era tipicamente semita, por oposição ao espírito científico, e constituía uma barreira ao progresso: a sua civilização era inferior à ariana, que produzira a ciência e a filologia.

De facto, a confiança na superioridade da civilização ocidental e no modo ocidental de ver as coisas sobre o Islâmico tem sido instintiva em grande parte dos estudos ocidentais. Há tendência para produzir estudos que parecem preocupar-se mais com debates em curso entre intelectuais ocidentais do que com uma compreensão imaginativa das sociedades muçulmanas. Para além disso, parece ser particularmente difícil para os estudiosos educados num ambiente basicamente agnóstico e materialista compreenderem o poder da fé. Isto pode explicar o porquê da investigação de maior qualidade e sensibilidade ter sido realizada por cristãos devotos; numa altura em que se vêem cada vez mais sobrecarregados pelas tensões mundiais, os cristãos encontraram uma nova afinidade com aqueles que também adoram o mesmo Deus.

Ficamos assim frente ao singular paradoxo de que, embora as tradicionais fontes de hostilidade para com o Islão que derivam da polémica cristã medieval ainda floresçam sob forma secular, são cristãos devotos quem parece estar mais perto de compreender o Islão. A velha objecção centrada no prazer e na sensualidade transformou-se numa nova objecção quanto à situação das mulheres. A preocupação com a violência tornou-se discordância quanto aos castigos desumanos e às políticas sanguinárias de algumas sociedades muçulmanas.

O medo do poder muçulmano, que deu lugar, com a expansão do Ocidente, a um sentimento de superioridade, volta a crescer à medida que o petróleo vai proporcionando aos muçulmanos a possibilidade de influenciarem a vida ocidental e que uma maior afirmação lhes dá vontade de o fazerem. Para além disso, embora os Ocidentais já não se sintam perturbados pela ideia da impostura de Maomé, preocupam-se pelo que agora parece, aos seus olhos, uma heresia: o desejo que muitos muçulmanos têm de subordinar a vida da sua sociedade e o funcionamento do Estado moderno à Lei sagrada. De facto, parece que a reprovação do Islão que, por vezes, se exprime em hostilidade aberta está arraigada na cultura secular do Ocidente. (…)

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