Coord. por Yiossuf Adamgy
Em nome de Deus, Clemente e Misericordioso
– “Ó humanidade! Na verdade, Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em tribos e nações, para que se conheçam uns aos outros” (Alcorão, Sura 49 vers.13), na base da justiça, que é uma boa e frutífera palavra: “Como a árvore nobre, cuja raiz está profundamente firme, e cujos ramos se elevam até ao céu.” (Alcorão, Sura 14 vers. 24).
– “Deixemos que a divisa do diálogo civilizacional seja o vers. 83 do Cap 2 do Alcorão que diz: “Falai com brandura a todas as pessoas”, e deixemos que a finalidade do diálogo seja a de adquirir a liberdade tão vasta como o universo.
“Diz: Todos agem de acordo com a sua própria disposição. Mas o teu Senhor sabe melhor quem é e está Melhor guiado no caminho.” (Sura 17 vers. 4).
“Diz: … O teu dever é proclamar a Mensagem.” (Sura 3 vers. 20).”
“Para Nós será o regresso deles. Então caberá a Nós chamá-los para as contas.” (Sura 88 vers. 26).
“Não há compulsão na religião.” (Sura 2 vers. 256).
Com a nossa saudação fraternal, maior respeito e consideração.
Querido irmão Bento:
Permita-me que o trate assim, como um irmão mais velho. Esta liberdade de escolha é, creio eu, facultada dentro do quadro de dois piedosos princípios: primeiro, há o facto de todos nós sermos membros da raça humana, em todos os continentes e em todas as épocas, no tempo. Descendemos de Adão que foi criado da lama; assim, todos são irmãos e irmãs e o homem é irmão do homem, quer queira quer não. Em segundo lugar, o reconhecimento mútuo e a amizade (não a matança mútua, o ódio e a vingança) são os termos Islâmicos para o diálogo intercivilizacional e intercultural:
Dizia eu, então, querido irmão Bento. Indubitavelmente que sabes que, enquanto Muçulmanos, a nossa ascendência na Fé remonta ao nosso pai comum, o Profeta Abraão, pai de Ismael e de Isaac (a paz esteja com eles), e que fazemos parte desse mesmo universo luminoso de crentes que Deus lhe prometeu como descendência.Então, levou-o para fora e disse-lhe: ‘Olha para o céu e conta as estrelas, se é que as consegues contar’. E disse-lhe: ‘Assim será a tua descendência’ (Génesis, 15, 5). Irmão, nós, os Muçulmanos, assim como toda a Humanidade, esperamos muito de ti. Esperamos a tua contribuição clara, decidida e decisiva, para a neutralização da infinidade de bombas de ódio, prontas a serem activadas nos arsenais mentais das pessoas mais afastadas da espiritualidade e da transcendência, tanto a Oriente como a Ocidente.
É pela posição que ocupas e responsabilidade que tens perante o ser humano, e especialmente perante o universo de crentes prometido a Abraão, que verificámos que a tua lição de Teologia do outro dia, proferida na Universidade de Ratisbona – Alemanha, não foi uma das mais bem sucedidas e nem correctas.
Tratou-se de uma apresentação académica, visto que, acima de mais, és um erudito em teologia. Se era tua a intenção de desafiar os sábios Muçulmanos para uma discussão acerca dos méritos e desméritos de ambas as religiões em termos de fé e de razão, qualquer erudito Muçulmano de terceiro nível estaria disposto a aceitá-lo. Contudo, e em primeiro lugar, terias que abdicar do seu posto e voltar a ser um académico. Na História contemporânea, nunca os Papas cederam às discussões inter-religiosas. Pelo menos, os três últimos Papas tinham consciência do Mundo e ordenavam o respeito para com as religiões.
Foi uma lição maculada pela irresponsabilidade e pela indolência, que fomenta uma visão trivial e frívola do Islão, que favorece o confronto entre crentes e que se submete servilmente ao jogo dos terroristas e dos poderes, ditos democráticos, que não hesitam em assassinar milhares de inocentes, violar todo um conjunto de resoluções, invadir impunemente os países ou desalojar milhões de pessoas, deixando-as sem casa e sem história, em nome de uma ideia de Deus, liberdade ou Democracia, que não correspondem e não se harmonizam com os valores que emanam de um Deus Misericordioso e Compassivo. Democracia, que hoje está em conflito com as democracias reais, só o será, como definiu Rousseau, “quando, numa sociedade, ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém”.
No momento em que redigimos esta carta, é-nos possível ler títulos onde a tua própria segurança é já posta em causa. Sentimos que foste induzido pelos obscuros poderes dominantes do Mundo a trespassar esta linha vermelha que, do nosso ponto de vista, não devias nunca ter passado, e receamos que a utilização da tua elevada pessoa e posição sejam mesmo manipuladas ao mais dramático extremo. Um sangrento ataque contra a Igreja representaria uma excelente desculpa e um perfeito álibi para legitimar, sem necessidade de mais nada, o progressivo e definitivo extermínio da fé unitária.
Tu, irmão Bento, precisas sinceramente reflectir se, com tal declaração, estás a ser um nobre defensor da Verdade, se estás a ser o favorecedor evidente da Paz que todos esperamos que sejas, e para o qual também nós, fiéis Muçulmanos, dirigimos o nosso olhar.
Tens que ter consciência que já recentemente se fez uso do Islão para um confronto entre os crentes. E há que recordar o martírio dos irmãos cistercienses de Tibhirine. Assassinato este, no qual existem suspeitas da autoria real dever-se aos serviços secretos de um país Europeu de marcada tradição colonialista na zona.
Voltamo-nos também para ti, porque acreditamos na bondade da mensagem de nosso Jesus (a paz esteja com ele). Não te admires por nos referirmos a ele com tais palavras, pois é assim que as mães Muçulmanas ensinam os seus filhos a chamar a Jesus: “Este é Jesus, filho de Maria, é a pura verdade, da qual duvidam” (Alcorão 19, 34).
Como vês, para nós, Jesus também é ‘palavra’, é a pronunciação viva da Verdade. É ele quem na Revelação contribui com o conceito da Ternura de Deus. Jesus é ‘al Ruh al Qudus’, o Espírito da Santidade…Jesus é tão vosso como nosso, é ele quem nos une, se é que aquilo que verdadeiramente queremos é a união e a Paz.
Quanto à tua suposição de que o Cristianismo é o produto da síntese entre a fé do Velho Testamento e a filosofia Grega da razão, estás a separar o Cristianismo da sua origem Hebraica, ocidentalizando-o e revelando, uma vez mais, o teu sectarismo Europeu. Surpreende-nos que, em lugar de dares valor à razão, queiras roubar o significado que tem o semitismo da pessoa de Jesus. Jesus era Aramaico, o Aramaico é a língua materna de Jesus e com o esquema mental que forma a língua materna semítica é que se dirige e relaciona com Deus. O próprio Paulo o recorda na sua carta aos Romanos, quando refere que ‘…recebestes um espírito de adopção pelo qual chamamos:’Abba, Pai!” (Romanos, 8: 15).
Acreditamos sinceramente que devolver o Novo Testamento ao estudo pré-grego acentuaria as extraordinárias semelhanças existentes entre a mensagem de Jesus e o Islão. Evitar isso seria o mesmo que dissimular a natureza semítica de Jesus, um acto que não apenas serve para aprofundar a distância entre os crentes, mas também que acabará por supor que o Cristianismo perde não apenas a Deus (Pai), com O Qual encerrou já o acesso devido às desnecessárias intermediações impostas pelo Cristianismo, mas que a perda será ainda mais terrível, ou seja, é o verdadeiro Jesus quem acabará desprovido da transcendência e, portanto, da Revelação, acabando transformado num ‘ídolo da razão’, o que converterá definitivamente a vossa crença numa religião materialista. A nossa proposta é a de que vos volteis para a oração de Jesus: ‘Pai Nosso…’, ‘Abbá…’ Que grave perda foi para o Cristianismo cimentar a teologia à margem da oração de Jesus e viver em permanente contradição!
Qual é o conflito entre a razão e a transcendência? Acreditamos que a tua aula apresenta algum desacordo relativamente a este tema, apesar do mestre de Tomás de Aquino ter sido um Muçulmano Hispânico, Averróes.
Baseias toda a Dogmática no ‘mistério’. A transubstanciação é um mistério, todos os sacramentos são um mistério, a Virgindade de Maria é um mistério, a concepção de Maria é um mistério, a humanidade e a divindade de Jesus, perfeitamente equilibradas, são um mistério, a Trindade…é um mistério. Nós partilhamos convosco alguns desses mistérios, especialmente no que se refere a Maria; contudo, como nos explicareis a Trindade com a razão? Como se pode explicar o mistério do amor de Deus tendo a razão como única arma? Como podeis explicar todos os mistérios da fé católica, a não ser recorrendo a um Deus transcendente? É possível medir Deus? Nem mesmo o rosto humano de Deus poderia ter explicação, se é que a tem, sem um Deus transcendente.
Por último, dizes ‘que o Islão se propagou pela espada’.
Na realidade, acreditamos que o fazes para esconder a tua profunda admiração para com a nossa fé, para com a nossa adoração perseverante e intensa. Uma fé inquebrável, que faz com te perguntes, sem encontrar respostas convincentes, porque são tão poucos os Muçulmanos que se convertem ao Cristianismo, e tantos e tantos aqueles que, depois de terem sido Cristãos praticantes, reconhecem no Islão a nossa própria constituição enquanto seres humanos, o nosso lugar no Cosmos. A verdade é que custa, quando se é Cristão, ver como as Mesquitas estão cheias todas as sextas-feiras, de homens e de mulheres de todas as idades, com as frontes junto ao solo, prostradas na mais sincera atitude de aceitação da vontade de Deus. O que chama especialmente a atenção é que estes participantes são sobretudo homens, sendo que a sua grande maioria é composta por jovens. E as Igrejas encontram-se vazias, apenas as mulheres, especialmente as já de idade, poucas ainda com um véu ou lenço na cabeça, rezam, espalhadas pelos bancos solitários. É duro. Sabem-no muito bem, aqueles que entre nós, que já foram Católicos e que durante muitos anos serviram à Igreja. É lamentável, inclusive, que os dois únicos jejuns obrigatórios da Igreja (a pão e água) sejam cumpridos por tão poucos paroquianos, enquanto que mais de 1500 milhões de pessoas fazem um jejum total, de sol a sol, durante os abençoados trinta dias do Ramadão, mês mais sagrado do Islão, que irá entrar dentro de três dias. A pergunta que possivelmente deverias fazer é a seguinte: o que há no interior dos corações desses crentes? Fanatismo…ou a pura e simples experiência de Deus?
É possível que, 1400 anos depois das supostas conquistas Islâmicas, quem tenha professado a fé pela espada, continue hoje a fazê-lo com este imenso fervor? O único lugar do mundo Islâmico onde não foi possível prosseguir com estas impressionantes demonstrações de amor a Deus, foi na Espanha Andaluza, pois aí teve lugar um genocídio religioso brutal, cometido por Católicos contra Muçulmanos e Judeus por meio da espada, muito mais forte, violento e sanguinário. Uma espada que se ergue de novo, e cuja sombra não deveria confundir-se com a cruz de Nosso amado Jesus, filho de Maria.
Diz-se e lê-se por aí que o “Papa sabe que uma guerra religiosa é uma maneira excelente de recuperar o Cristianismo. O Islão radical está a dar-lhe uma oportunidade. As desculpas são apenas poeira para os olhos. E preciso reunir os rebanhos quando os lobos andam por perto, e o pastor sabe disso…”. Espero e apelo que não deixes que, isso que se diz e se lê, se torne verdade verdadeira.
Irmão Bento, não receies o Deus transcendente que adoramos. Não receies o abismo. Se de facto a tua fé é um acto de confiança plena, saltarás, sem duvidar, no vazio do Deus Único. Reflecte e medita se talvez a vossa fé não é uma fé presente e tomada, em que, por um impulso da natural debilidade humana permanecereis na borda do precipício, refugiados na imagem humana de Deus, da qual conseguis a segurança que vos falta para que vos entregueis plenamente a Ele.
A nossa fé, salvaguardadas pequenas diferenças, assemelha-se à de Francisco de Assis, João da Cruz ou Teresa de Ávila, todos eles justos e conhecedores da tradição espiritual Islâmica chamada sufismo, praticantes de uma fé despojada, numa fé que se eleva no bonito salto no vazio da imensidão de Deus para conhecer por fim que apenas Deus basta, que apenas Deus existe, que apenas Allah existe…
Porque recear então?
Allah ama-te, irmão Bento.
Que a Sua Misericórdia derrame abundantemente sobre ti e sobre a Igreja. E, da nossa parte, Paz.