Por Mustafa Ceric, Grão-Mufti da Bósnia
Versão Portuguesa de Al Furqán, in revista nº. 156 – Janº./Fevº.2007
Há um milagre e um enigma na História Muçulmana que não podem ser logicamente explicados.
O milagre reside na rapidez e abrangência da expansão do Islão no início do século sétimo, de uma nobre perspectiva árabe-beduína, para as duas grandes civilizações da época – a Persa e a Bizantina. O enigma encontra-se no rápido declínio da civilização Islâmica no século XVIII, após ter demonstrado uma vitalidade e capacidade sem precedentes. Por esta altura, os muçulmanos haviam perdido o protagonismo geográfico, cultural, económico e político no panorama mundial, a ponto de serem marginalizados na denominada História Moderna. Esta conjuntura impeliu os muçulmanos a uma luta, ao longo dos últimos dois séculos, pelo seu regresso ao centro da História Moderna ou da História Universal. Assim sendo, os muçulmanos têm vindo a empenhar-se em dois movimentos centrais, cujo objectivo é recuperar o seu lugar na História: a secularização e a reislamização.
Podemos reconhecer o problema da identidade muçulmana moderna, através do debate em torno da natureza de secularização da História Muçulmana e do método de re-islamização do espírito muçulmano. A ideia de secularização não surgiu aos muçulmanos em resultado da sua experiência própria. A maioria dos ulama (eruditos) muçulmanos, bem como alguns intelectuais muçulmanos, sempre se aperceberam de que a ideia de secularização das sociedades muçulmanas proveio do Ocidente, através da pressão política e até, por vezes, da pressão militar.
Esta é uma das razões pelas quais a secularização da História Muçulmana falhou, talvez com as excepções da Turquia e da Tunísia, e a orientação para uma re-islamização do espírito muçulmano está a ocorrer. Os muçulmanos têm recusado desistir da ideia de uma comunidade universal do Islão (a Ummah), mesmo que esta corresponda a uma utopia, pelo menos actualmente. Para os muçulmanos que acreditam no conceito de Islamização, o secularismo não passa de uma concepção étnica, racial e nacional de identidade cultural.
Não obstante, os muçulmanos aceitaram a ideia da identificação com um estado-nação, independentemente das razões. Apesar disso, estão conscientes do conceito de identidades múltiplas, o que significa que cada um pode reconhecer uma identidade universal, tal como uma identidade islâmica, num estado presumivelmente não-islâmico. E por isso perguntei: Existe uma identidade própria dos muçulmanos europeus?
Quem precisa da identidade muçulmana europeia?
Mas deveríamos perguntar primeiro: quem precisa de uma identidade muçulmana europeia? Aparentemente, os muçulmanos não necessitam dela, porque a sua identidade islâmica é tão universal e inclusiva que não precisam de qualquer identidade adicional. A Europa não é dar al-Islam (a morada do Islão) e não podem, pois, identificar-se com ela. Por seu turno, os europeus não precisam da identidade muçulmana europeia, na medida em que a identidade religiosa de alguém não é considerada tão relevante.
Contudo, acredito que tanto os muçulmanos que vivem na Europa, como os Europeus que agora podem vislumbrar um muçulmano na vizinhança sem terem de ir ao Afeganistão, devem reconhecer a existência de uma categoria de muçulmanos europeus ou de europeus muçulmanos. Pelo facto de o Islão ser, precisamente, uma fé e religião universais e inclusivas, os muçulmanos deveriam adoptar uma atitude receptiva a novas identidades culturais e nacionais. Ao contrário do Judaísmo, cuja preocupação reside principalmente nos trabalhos missionários ao serviço do apoio político a Israel, tanto o Islão como o Cristianismo consistem numa fé missionária, enquanto conjunto de actividades religiosas transculturais e transnacionais. Os europeus deveriam zelar pela construção de uma identidade para os muçulmanos europeus, porque a ideia de que a Europa é um continente exclusivamente cristão não é correcta. Um facto histórico incontornável, testemunhado ao longo de séculos, é a presença não somente de muçulmanos como também de judeus, residentes na Europa. Ambos trouxeram contributos significativos à vida e cultura europeias.
Os europeus deveriam estar conscientes não só da presença de muçulmanos na sua vizinhança, como também do facto de que essa mesma presença fortalece e confere mais sentido à sua própria identidade. Permitam-me recordar-lhes o princípio da incerteza de Heisenberg. O físico alemão Heisenberg revelou a complexidade em verdadeiramente conhecer e avaliar tudo sobre um objecto, seja ele um electrão ou um coelho, uma vez que o próprio acto de observação altera o comportamento do objecto observado. Como tal, tudo o que existe para além da esfera humana só pode ser conhecido de forma isolada.
Nós, humanos, somos completamente diferentes. Nós só podemos ser conhecidos, e só nos podemos auto-conhecer, através da interacção com o mundo que nos rodeia. Ao contrário dos electrões e dos coelhos, nós alcançamos o auto-conhecimento mediante a investigação, experimentação e modificação da relação com o mundo em que vivemos. O isolamento é uma tortura e destrói toda a auto-consciência. Só os relacionamentos é que proporcionam a identidade que emana da convivência entre pessoas. Além disso, a lealdade para com a sociedade em que vivemos é determinante para a nossa identidade individual e colectiva. Uma comunidade, ou sociedade, não é só uma escolha meramente necessária; são os relacionamentos que nos definem e é através deles que chegamos a conhecer-nos a nós mesmos e que o mundo chega ao conhecimento de nós. As pessoas vivem a sua identidade através das relações com o mundo que as envolve. Aqueles que passam o tempo em isolamento e segregação, convencidos que deste modo alcançam o conhecimento de si próprios, estão enganados. Muito pelo contrário: o Homem alcança (a via do) o auto conhecimento mediante o contacto e a interacção com tudo o que, vivo ou morto, o circunda.
Valores Comuns
Para se compreender o significado da identidade dos muçulmanos europeus, devemos conhecer os valores comuns básicos, com os quais nos poderemos identificar.
Assim como são universais, os valores são comuns. Os mais importantes de todos os valores universais, e no entanto comuns a todos nós, são o valor da vida, o valor da liberdade, o valor da religião, o valor da propriedade e o valor da dignidade humana. Consequentemente, os valores europeus têm tanto de comum, como de universal e sendo universais, os valores são comuns a todos nós.
Comecemos pelo valor da vida e pelos conceitos dos Dez Mandamentos: Tu não matarás, o que significa que tu não cometerás o holocausto, não cometerás genocídio e que não cometerás a limpeza étnica. O que será mais comum a todos nós que o valor da vida?
A liberdade é um importante valor; sem liberdade a vida não chega a fazer sentido. O caminho da escravidão à liberdade tem sido uma das mais importantes jornadas da história da humanidade. Inclusivamente, a liberdade é um valor europeu de tal forma precioso, que foi conquistado ao longo de gerações à custa da perda incalculável de vidas humanas.
O respeito pela religião é também um valor europeu comum, na medida em que os europeus tiveram liberdade para escolher uma dentre as muitas religiões que vinham chegando ao continente europeu ao longo da História: o Judaísmo, o Cristianismo, o Islão, e ainda muitas outras religiões orientais. Nenhuma das principais religiões europeias – o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão – teve origem na Europa. Todas elas provieram do Oriente.
O direito à propriedade, enquanto factor decisivo para uma vida humana digna, é um valor da Europa que deveria ser defendido como valor comum à humanidade.
Por fim, o valor da dignidade humana é um valor comum que tem de ser aperfeiçoado na Europa, especialmente no que respeita ao combate contra a xenofobia, racismo, fascismo, anti-semitismo, islamofobia, etc.
Algumas definições de Europa
Em 1751, Voltaire definiu o conceito de Europa como ‘uma grande república dividida em vários estados, alguns monárquicos, outros mistos …. mas todos relacionados entre si.
Todos eles têm a mesma fundação religiosa, mesmo que se dividam em confissões diversas. Todos eles têm o mesmo princípio de direito e política públicos, desconhecidos noutras partes do mundo. (Davies 7)
Numa tentativa de demonstrar a unidade da cultura europeia (Die Einheit of Europaeischen Kultur), T. S. Eliot refere-se à mesma, num escrito de 1946, nos seguintes termos: ‘O aspecto dominante inerente à criação de uma cultura comum entre povos, cada um dos quais com a sua própria e distinta cultura, é a religião …. refiro-me à tradição comum do Cristianismo, que fez da Europa o que é, e aos elementos culturais comuns que este Cristianismo comum trouxe consigo … Foi no seio do Cristianismo que as nossas artes floresceram; foi no Cristianismo que as leis da Europa – até recentemente – se enraizaram; foi sobre o pano de fundo do Cristianismo que todo o nosso pensamento adquiriu significado’.
Um indivíduo europeu poderá não acreditar que a Fé Cristã é verdadeira; e no entanto, o que ele diz ou faz dependerá da herança cristã para adquirir sentido. Só uma cultura cristã é que poderia ter originado um Voltaire ou um Nietzsche. Não acredito que a cultura da Europa pudesse sobreviver perante o completo desaparecimento da Fé Cristã. (Davies 9).
No que se refere à relação entre a Europa e as outras culturas e religiões, Hugh Seton-Watson adoptou uma abordagem mais inclusiva, ao escrever o seguinte, em 1985: ‘O entrecruzamento das noções de Europa e de Cristandade é um facto da História que não pode ser invalidado nem pelo mais brilhante dos sofismas … . Mas não é menos verdade que há presenças na cultura europeia, para além do Cristianismo: a presença grega e latina, persa e (na época moderna) a judaica. Se há também uma presença muçulmana, isso já é mais difícil de determinar. (Davies 15)
A Europa deveria reger-se pelo direito individual à vida, liberdade, religião, propriedade e dignidade que conduzirão a uma consciência colectiva de um destino humano comum.
O amplo pluralismo de valores da União Europeia deveria acompanhar estes nobres princípios de conduta humana:
- O argumento do poder das grandes nações deveria ser substituído pelo argumento do direito das pequenas nações.
- O argumento do mito histórico deveria ser substituído pelo argumento da responsabilidade histórica.
- O argumento do débil compromisso político deveria ser substituído pelo argumento do forte empenho moral.
- O argumento do comportamento pecaminoso deveria ser substituído pelo argumento do humilde arrependimento de Adão.
- O argumento da falsidade deveria ser substituído pelo argumento da verdade de Abraão.
- O argumento da vingança deveria ser subs- tituído pelo argumento do amor de Jesus.
- O argumento da guerra deveria ser substituído pelo argumento de Muhammad da paz para toda a humanidade.
A identidade enquanto continuidade da memória
A Europa tem de enfrentar muitas questões essenciais:
- O que é a memória europeia, se é que existe?
- O que é a continuidade da memória europeia enquanto identidade?
- Ela é somente política? É cultural por natureza? É focalizada na religião?
- Será a memória europeia apenas uma memória do passado?
- Terá a Europa uma memória presente?
- Ousará a Europa ter uma memória futura com múltiplos credos?
- Estará a Europa preparada para aceitar a memória do Islão enquanto continuidade da sua memória e das suas múltiplas identidades?
Temo que a Europa ainda apresente alguma relutância em aceitar a memória do seu futuro, na qual o Judaísmo e o Islão evoluem a par com o Cristianismo. Eu encaro a Europa como uma sociedade aberta, com múltiplas identidades de um determinado espírito político, de um pulsar cultural único, de uma alma religiosa pluralista que encontra a felicidade no seu objectivo de unidade com uma diversidade de oportunidades espirituais.