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Legítima defesa ou crime?

Por Salem H. Nasser, professor de Direito Internacional, Direito GV (Edesp-FGV)

Talvez uma das frases mais significativas, de tudo aquilo que tem sido dito desde que eclodiu a última crise envolvendo o Líbano, o Hezbollah e Israel, é aquela do presidente americano, George Bush: “Israel tem o direito de se defender”. Então é isso: a posição oficial do governo da maior potência mundial, detentora de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, onde acaba, por sinal, de usar seu poder de veto contra uma resolução condenando os ataques israelitas contra civis em Gaza, é a de considerar que os ataques de Israel à população civil do Líbano e à sua infra-estrutura constituem actos de legítima defesa. Bush pede, é verdade, que o exercício desse direito de defesa seja comedido, cuidadoso. Mas o cuidado necessário nada tem a ver com a protecção de civis inocentes diante da violência indiscriminada ou com evitar que a população seja colectivamente punida e encarcerada em um acto de vingança. O cuidado a ser tomado é o de não fazer nada que derrube o governo libanês. É a expressão, portanto, de uma conveniência política e não de uma preocupação humanitária ou legal.

Comecemos lembrando o óbvio. Líbano e Israel não são países amigos. Além de ter sofrido por mais de 20 anos com a ocupação israelita e ser ainda hoje vitimado constantemente por violações de seu território, o Líbano reclama de Israel a devolução de uma parte do que considera ser seu território, a libertação e devolução de libaneses presos em Israel e a entrega dos mapas das minas terrestres plantadas no sul do Líbano e que lá permanecem. Israel, por sua vez, vê o Líbano como país que oferece grande risco à segurança de sua fronteira ao norte e reclama dos ataques a suas cidades a partir do território libanês. O Hezbollah e Israel são inimigos declarados. Eles têm protagonizado um face a face violento desde que o primeiro foi criado, em 1982, para resistir à ocupação israelita. Já os EUA são o maior e mais decisivo aliado de Israel, em favor de quem tentam fazer pender a balança de poder na região. Para isso, tentam enfraquecer a posição relativa do Líbano enquanto adversário de Israel e, para tanto, eliminar o Hezbollah. Nestas circunstâncias, é normal e é compreensível que os lados opostos por uma contenda olhem para os factos a partir de perspectivas diversas e interpretem e justifiquem a realidade de modos conflitantes.

O Hezbollah, desde sua perspectiva, apresenta a seguinte interpretação para o ataque aos soldados israelitas e a captura de dois deles: trata-se de uma operação militar, dirigida contra soldados de um país inimigo. Os objectivos declarados da operação são, por um lado, garantir os meios de negociar a libertação de prisioneiros libaneses e outros das prisões israelitas e, por outro lado, desferir um golpe que poderia ser útil na luta pela desocupação de uma parte do território libanês. A justificativa apresentada combina justamente a continuidade das detenções de libaneses, sem acusação nem julgamento, e a permanência da ocupação israelita nas fazendas de Chebaa. A justificação se estende para além disso: o Hezbollah se considera parte integrante da luta contra a ocupação por Israel dos territórios palestinos e responsável também pelo destino de milhares de presos palestinos que enchem há décadas, também sem acusação nem julgamento, as prisões israelitas. A justificação abarcará ainda a solidariedade com a população de Gaza, onde civis têm morrido às dezenas nos últimos dias.

A perspectiva israelita é diferente. Para Israel, o ataque do Hezbollah foi o acto criminoso de uma organização que considera terrorista. Criminoso porque operado sem provocação e com o desrespeito à linha azul separando os dois países. Os objectivos declarados de sua operação de guerra contra o Líbano são a recuperação dos soldados e a destruição da capacidade de acção do Hezbollah. Esses mesmos objectivos justificam, segundo Israel, o modo como tem atacado o Líbano e a escolha dos alvos. Os EUA partilham, de modo geral, dessa mesma visão das coisas.

Dentro do Líbano e no mundo árabe em geral é possível encontrar aqueles que criticam a acção do Hezbollah sem, evidentemente, concordar com a resposta israelita. Consideram alguns que, apesar de legítima, a acção contra soldados israelitas veio no momento errado, dando aos israelitas a oportunidade de reagir violentamente e fazendo com que a população inteira pague preço caro.

Existem diversas perspectivas e muitas dessas coisas, a justiça de cada causa, a oportunidade e a legitimidade de cada acção, podem ser de facto debatidas. Mas algumas coisas, vistas através de não importa qual lente, são o que são e devem ser chamadas pelo seu nome. A humanidade sempre conheceu a guerra e nosso senso de humanidade estabeleceu regras e nos ensinou o que era inadmissível. O direito, essa outra produção humana, define como crimes alguma acções.

Os ataques indiscriminados contra as populações civis são crimes. A punição colectiva dessas populações é crime. Se a consulta ao direito internacional for enfadonha, basta ao homem consultar a sua consciência e o seu bom senso. Se para recuperar dois soldados capturados é lícito despejar as bombas sobre as casas das famílias, matando-as inteiras, talvez não seja crime explodir a si próprio num supermercado cheio de civis inocentes para lutar contra a prisão arbitrária e por tempo indeterminado de milhares de homens, mulheres e crianças, ou lutar contra a ocupação de sua terra, ou insurgir-se contra a opressão permanente a todo um povo, sobretudo quando, para se explodir, podem combinar o desespero e a falta de outros meios.

Mas não, nem toda violência é legítima, ainda que seja justa a causa, e um crime não pode ser travestido de legítima defesa. As nossas consciências podem estar adormecidas e, talvez, aceitem que a etiqueta “danos colaterais” seja colada às crianças, às mulheres, aos inocentes. Elas podem estar hipnotizadas pela “versão oficial”, segundo a qual tudo começou com o seqüestro criminoso de soldados israelitas e deixa a impressão de que antes disso ninguém morria em Gaza e ninguém sofria sob Israel. Mas é sempre tempo de acordar.

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