por M. Yiossuf Adamgy, in seu livro “Nem Deus, nem Sexo’
Resposta ao livro “O Sexo de Alá” de Martin Gozlan
A repórter francesa M. Gozlan , no seu livro ‘O Sexo de Alá’ escreve: “[…] Quando, em Cabul, TOMBA O REGIME TALIBE, PARA APÓS A QUEDA DAR LUGAR A LEGISLADORES QUE SE CONTENTAM EM PRESCREVER ‘PEDRAS MENOS PONTIAGUDAS’, PARA OS APEDREJAMENTOS. ” (pág. 120).
Em primeiro lugar, devo aqui registar que o regime dos taliban foi implementado no Afeganistão pela Administração Americana, através do Paquistão.
Quanto à questão de apedrejamento ou lapidação, essa é verdadeiramente problemática para o Islão, visto ela nunca ter sido mencionada no Alcorão enquanto castigo possível de aplicar aos adúlteros. Trata-se, pois, de uma prática que tem por base um hadice do Profeta, cuja veracidade tem levantado inúmeros problemas a vários intérpretes do mesmo.
No Alcorão, texto fundador do Islão, não existe vestígio algum da incitação à lapidação. Este assunto não é evocado. Apesar do Alcorão repetir por inúmeras vezes que o adultério é um acto nocivo, um crime que é necessário repelir, não se encontra referência alguma à lapidação enquanto castigo a aplicar a este acto, apesar de se tratar de um acto imensamente reprovável.
Hierarquicamente falando, o Alcorão ocupa o topo da hierarquia, e é a partir dele que se deverão fazer todas as interpretações de outros textos Muçulmanos, como é o caso das narrativas relativas à vida do Profeta.
Os Muçulmanos chamam a atenção para o facto de que, o adultério, é um acto proibido por todas as religiões monoteístas.
No Islão, assim como nas outras duas grandes religiões monoteístas, existem três elementos essenciais e, a não observação de um desses elementos, constitui um acto de imensa gravidade: de facto, é imperativo adorar um só Deus; não matar; e não cometer adultério. E, mesmo no caso da não observação de um destes três pontos, o Alcorão não prevê a morte para o culpado, nem por lapidação, nem por outro meio qualquer.
Se tivermos em conta a História, verificamos que a lapidação provém da Lei Judaica. Os Judeus lapidavam as mulheres e os homens adúlteros. É uma prática que existe na Lei de Moisés. Cristo foi o primeiro a contestá-la. A lapidação foi objecto de uma discussão “polémica” entre Cristo e os membros do Sinédrio (os juízes e os juristas judeus). Estes últimos levaram à presença de Cristo uma mulher adúltera, dizendo-lhe que, segundo a Lei de Moisés, ela deveria ser lapidada, pedindo-lhe o seu conselho a esse respeito. Dizem os textos Cristãos que Cristo respondeu que, “aquele que nunca tivesse pecado, atirasse a primeira pedra”, e que os membros do Sinédrio “retiraram-se, a começar pelos mais velhos”. A meu ver, este momento representa uma revolução extraordinária na história da Lei Semítica monoteísta.
No texto fundador do Islão, o Alcorão, não existe vestígio algum da incitação à lapidação. Não existe versículo Alcorânico algum que diga para se aplicar a lapidação. Apenas relatos da vida do Profeta a justificam perante aqueles que a defendem e, mesmo assim, convém interpretar bem esses mesmos relatos. Relatos esses (Ahadith) referem o que o Profeta permitiu em determinadas ocasiões.
A Surah “As Mulheres” (Surah 4, versículo 15) prevê que a mulher adúltera seja “fechada em casa, até ao momento da sua morte, a menos que Deus lhe ofereça um meio de salvação”. No entanto, a Revelação desenrolou-se ao longo de 23 anos. Houve versículos mais precisos relativos à questão do adultério, por exemplo, a serem revelados após os compreendidos pela Surah das Mulheres (os quais prevêem o encerramento das mesmas). O registo aquando do tempo da Revelação permitiu o desenvolvimento daquilo a que os teólogos Muçulmanos chamam “a ciência da abrogação”. Assim sendo, a recomendação do encerramento das adúlteras foi ab-rogada por um versículo da Surah da Luz, o qual recomenda que estas sejam castigadas através do uso do chicote. Assim que recebeu este versículo, o Profeta exclamou “eis a saída oferecida por Deus às mulheres adúlteras na antiga Surah!”.
O Alcorão (Surah 24, “A Luz”, versículo 2) recomenda que se “chicoteiem o libertino e a libertina…”. Isto significa que o chicote se destina tanto aos homens, como às mulheres.
Por outro lado, é praticamente impossível provar o adultério… . São necessárias quatro testemunhas, que um fio passe entre os corpos, que as testemunhas estejam de acordo, que serão chicoteadas as testemunhas concordantes, caso uma única as desminta ou refira ter dúvidas…. Repito que o Islão não só tem um objectivo pedagógico, como pretende também organizar a sociedade. Arrepender-se e invocar Deus publicamente vale mais do que a aplicação do castigo. Mas, na Surah da Luz, o texto não é ambíguo. Aqueles que cometem adultério, homens e mulheres, deverão receber cem chibatadas.
Determinados ahadith (plural de hadith) evocam a lapidação; o Alcorão é mudo a esse respeito. Como explicar, então, isso? Convém analisar tanto a importância, como o sentido simbólico das histórias referidas e, segundo as quais, o Profeta Muhammad (s.a.w.) permitiu aplicar a lapidação ou decretou esta pena.
Há que referir desde já, que, durante a vida do Profeta Muhammad (s.a.w.), a lapidação apenas foi aplicada àqueles que se acusaram a si mesmos de adultério e pediram ao Profeta para os “purificar” através desta pena.
Examinemos os casos em que a lapidação se verificou aquando da vida do Profeta e, na falta de referências expressas no Alcorão, estudemos o que nos diz a tradição oral dos feitos e dos gestos do Profeta.
Uma mulher dirigiu-se à presença do Profeta e acusou-se a si própria de adultério. Ele mandou-a embora uma primeira vez, perguntando-lhe se estava certa daquilo de que se acusava. Ela voltou uma vez mais, dizendo que engravidara em consequência do adultério praticado, e pedindo-lhe para ser lapidada, isto de acordo com a Lei de Moisés. Ele tornou a mandá-la embora, dizendo que se opunha à lapidação daquela que transportava em si uma vida. Ela voltou depois de dar à luz e, uma vez mais, o Profeta mandou-a embora, recomendando-lhe que acabasse de aleitar o filho. Ela voltou uma quarta vez e, por fim, o Profeta permitiu que ela fosse lapidada.
Podemos deduzir desta história trágica que o Profeta não só se opunha à lapidação, como repelia tanto quanto possível este castigo.
Num outro hadith, é-nos apresentado o caso de um homem que se acusou de adultério e pediu para ser lapidado. O Profeta mandou-o embora uma primeira vez, dizendo que, provavelmente, tudo não passara de simples abraços. O homem voltou uns dias depois, minado pelo remorso, e o Profeta voltou a mandá-lo embora, dizendo que, possivelmente, ele estava a exagerar em relação ao que não passara de um namorico. Mas o homem voltou de novo. E o Profeta resignou-se então, permitindo a aplicação da pena prevista. Referem os ahadith que o Profeta desviou o olhar aquando da lapidação, o que constitui prova suplementar do seu desacordo em relação a este tipo de castigo.
Porque motivo, então, aconteceram estes apedrejamentos, se o Alcorão não prevê este castigo?
A lapidação fundamenta-se num hadith. Aquele que o referiu indica que este não provém de um teólogo, mas sim de um simples carniceiro. Trata-se de uma maneira claríssima de dizer que duvida da veracidade do hadith em causa.
O castigo corporal, tanto no Islão, como no Cristianismo ou no Judaísmo, tem a sua história, ou seja, um princípio, um motivo e um fim. Há que entender as coisas no seu contexto. Quando a comunidade Muçulmana se mostrava hesitante, como uma criança pequena, o objectivo em vista era o de punir e recompensar. Uma criança adere mais facilmente a fazer os deveres escolares se os seus pais lhe prometerem uma recompensa material. Quando crescer, optará por trabalhar, porque sabe que isso lhe trará liberdade e independência. Não quero com isto dizer que podemos deixar cair os deveres e as obrigações dos Muçulmanos. Antes de tudo, há que educar correctamente as sociedades, em conformidade com os princípios da virtude e da moral.
A interpretação e o esforço de compreender o Texto Sagrado jamais terão fim. Trata-se da “ijthiad”, o esforço. Os castigos corporais tiveram como objectivo organizar a sociedade inicial. Actualmente, há que pesquisar no texto a sua razão de ser. E no mundo, que hoje passou a ser uma aldeia global, urge pesquisar também a pena de morte, sobretudo nos países ocidentais ditos de índole Cristão… .