Por Carlos Peixoto, jornalista e editor do “Tribuna do Norte “, jornal de Natal, Rio Grande do Norte
A mais recente agressão militar de Israel contra Gaza, desencadeada no dia 27 do mês passado, tão logo foi anunciado o acordo entre as lideranças das principais facções palestinas em torno do chamado ‘Plano dos Prisioneiros’ – que entre outras coisas leva ao reconhecimento do Estado judeu -, surpreende e estarrece apenas àqueles que esqueceram a história. As supostas ‘razões de segurança e autodefesa’, alegadas agora pelo primeiro-ministro israelita, Ehud Olmert, mostram que nada mudou nos objectivos e na acção política dos israelitas desde os tempos de Ben-Gurion.
O ponto central desses objectivos é a ideia por trás de todo o movimento sionista: a ocupação e manutenção do domínio de todas as terras entre a margem leste do Jordão e o Mediterrâneo, exclusivamente para os colonos judeus . A linha mestra da estratégia usada para alcançá-los foi fixada há mais de 70 anos, quando no final da década de 30 do século passado Ben-Gurion reflectia sobre as alternativas de expulsão de todos os árabes da Palestina e considerava que ‘aquilo que é inconcebível em tempos normais torna-se possível em períodos revolucionários; e se neste momento a oportunidade é perdida e o que é possível nestes momentos de exaltação não vem a ser concretizado, todo um mundo é perdido’ (Shabtai Teveth, Ben-Gurion and the Palestinian Arabs). O instrumento por excelência para o Estado judeu pôr em prática essas ideias sempre foi a força, reservando-se a atuação política apenas para justificar o uso e os resultados obtidos.
Um breve retrospecto de apenas três episódios, na história do conflito Israel/Palestina, são ilustrativos de como o sionismo soube adaptar essa orientação às várias circunstâncias político-militares que se apresentaram.
Um: em 1948, Israel aproveitou-se do ‘clima revolucionário’ da primeira guerra árabe-israelense e recorreu aos massacres em massa e à intimidação psicológica para expulsar populações inteiras de aldeias e cidades palestinas (Ein az Zeitun, Lydda, Deir Yassin, Haifa, Acre e outras), alegando que quebrar a resistência civil era uma necessidade de autodefesa essencial à sobrevivência do novo Estado.
Dois: o mesmo argumento foi reutilizado em 1967, quando Israel levou a contra-ofensiva para além das fronteiras judaicas estabelecidas pela ONU e expandiu o seu território até o litoral e sobre o Sinai.
E, três: em 1982, quando para sabotar os esforços de paz iniciados por Yasser Arafat e a OLP, invadiu o Líbano.
Analistas menos atentos à política de expansão e domínio israelita poderão conjecturar que os ‘acordos de paz’ de Oslo I (1993) e Oslo II (1995) constituem interrupções nesta seqüência e/ou mudanças na estratégia sionista. Mas essa é uma observação que pode ser tida como verdadeira apenas pela metade. Os acordos de Oslo, efectivamente, representam uma troca da opção sionista original – a ‘expulsão’ pura e simples dos árabes palestinos – pela ‘via do apartheid’. Como já foi descrito por inúmeros críticos de Oslo e constatado pela opinião pública internacional, os acordos não resultaram em nenhuma ‘autonomia real’ palestina nos ‘bolsões’ da Cisjordânia e de Gaza onde se instalaram os representantes da ANP criada por Arafat/Rabin. Nestes territórios, a Justiça, o abastecimento de água e de eletricidade, o recolhimento de impostos e o tráfego de mercadorias, veículos e pessoas continuam sob controle israelita. A segregação dos palestinos gerou uma situação de colapso económico, condições sanitárias precárias nas cidades, falhas nos serviços públicos e, por último, mas não com menor intensidade, de corrupção dos dirigentes e de revolta entre os jovens (as duas Intifadas foram expressões de tudo isso). O modelo preconizado por Oslo tem sua melhor representação histórica no antigo regime sul-africano, mas na prática foi muito além dele, uma vez que Israel não abriu mão do terrorismo estatal que viabiliza milhares de prisões arbitrárias e assassinatos de líderes palestinos. Em última circunstância, é melhor ser palestino em qualquer outra parte do mundo do que em Ramallah, o que na prática é uma ‘sugestão psicológica’ extremamente eficaz para se ir embora. Além disso, a troca de opção que esse modelo representou, por um breve período de tempo, parece estará chegar ao fim.
Antes mesmo das eleições de Dezembro de 2005, quando o Hamas assumiu pelo voto a maioria no Parlamento palestino e nomeou Ismail Haniyeh primeiro-ministro, Israel já vinha sinalizando que preferia descartar a presença de uma ANP ‘autêntica’ nos territórios. A invasão da Cisjordânia em Março/Abril de 2002 e o cerco a Arafat em Ramallah, mantido até a sua morte em Novembro de 2004, foi um marco significativo. O nome militar com que a invasão foi batizada – ‘Operação Escudo de Defesa’ – escondia, na realidade, o objectivo político de sufocar a ANP e inviabilizar a construção de um Estado palestino independente. O desmantelamento de algumas colónias em Gaza e na Cisjordânia, tampouco significa devoluções reais de territórios. As áreas desocupadas – e ainda assim, interditadas aos palestinos – não dão a ANP em ‘autonomia política e auto-suficiência económica’ qualquer ganho real. O desmantelamento foi, apenas, mais uma ‘representação midiática’ montada pelos israelitas. Assim como, agora – reocupando Gaza, destruindo equipamentos de infra-estrutura, estações de fornecimento de energia elétrica e prendendo, sem amparo legal, dezenas de líderes palestinos eleitos pelo voto direto – Israel se furta a examinar e dar uma resposta, perante a opinião pública internacional, a mais significativa iniciativa de paz dos últimos anos para a Palestina.
O chamado ‘Plano dos Prisioneiros’, para o qual o presidente da ANP, Mahmoud Abbas, conseguiu a aprovação do primeiro-ministro Ismail Haniyeh apenas 24 horas antes dos ataques israelitas, têm os seguintes pontos:
– o povo palestino trabalha para a libertação de sua terra e a realização de seus direitos à liberdade, ao retorno dos refugiados, à independência e à autodeterminação para a criação de seu Estado independente em todos os territórios ocupados em 1967, com Jerusalém como capital.
– a aceleração da aplicação de tudo o que foi assinado (durante o diálogo entre palestinos) no Cairo, em março de 2005, no que diz respeito à modernização e à reativação da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e a adesão do Hamas e da Jihad a esta organização como único representante legítimo do povo palestino.
– a fidelidade ao direito do povo palestino de resistir por todos os meios e a centralização da resistência em todos os territórios ocupados em 1967, enquanto as negociações e a acção política e diplomática continuam.
– a protecção e o fortalecimento da Autoridade Nacional Palestina (ANP), que é o núcleo do futuro Estado.
– a formação de um governo de união nacional sobre uma base que garanta a participação de todos os grupos parlamentares, sobretudo o Fatah e o Hamas.
– as negociações com Israel competem à OLP e ao presidente da ANP com a condição de que todo acordo crucial seja aprovado pelo Conselho Nacional Palestino (CNP, o Parlamento da OLP) ou submetido a referendo.
– rechaçar o lugar injusto imposto pelos Estados Unidos e Israel contra o nosso povo e convocar os povos e o governo árabe a apoiar o povo palestino, a OLP e a ANP.
– a recusa das divisões e das divergências, assim como da proscrição do uso das armas entre palestinos, independentemente da razão.
– a necessidade de reformar e modernizar o aparelho de segurança palestino para permitir-lhe defender a pátria e os cidadãos contra as agressões e a ocupação, garantir a segurança e a ordem e acabar com a anarquia em matéria de segurança.
O texto do plano foi elaborado por Marwan Barghuti, o chefe do Fatah na Cisjordânia, Abdeljaleq al Atche, um alto dirigente do Hamas, Abdelrahim Maluh, número dois da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), Bassam al Aadi, um dirigente do grupo extremista Jihad Islâmico, e Mustafah Bardarneh, da Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP). Todos eles estão detidos em prisões israelitas.·
Que um grupo de prisioneiros palestinos tome tal iniciativa (a simples menção de Israel no documento implica, na prática, no reconhecimento legal do Estado judeu por todos os signatários) e que essa iniciativa seja obliterada, na política e na mídia, por uma acção violenta do governo que os mantêm presos, diz muito do que se pode esperar da ‘política de boa-vontade’ israelita em relação à paz.