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Muçulmanos Hispânicos e os Efeitos de 11/09

Entrevistas – 25/08/2011 – Autor: Lyan Babylon – Fonte: Terra – Versão Portuguesa: Al Furqán, nº. 182

Hoje pode ter passado uma década desde a tragédia, mas o que não passou é a dor dos que perderam parentes no 11 de Setembro de 2001 e o ressentimento de outros.

Especial: os hispânicos superam os estereótipos no Islão

Com a tragédia de 11 de Setembro de 2001 a percepção sobre os muçulmanos nos Estados Unidos foi transformada. Imediatamente após os ataques, muitos americanos expressaram ressentimento contra este grupo religioso, mas hoje, 10 anos mais tarde, há um pouco mais de tolerância e a conversão ao Islão tem aumentado.

The New York Times diz que existem cerca de 200.000 hispânicos convertidos ao Islão a viver nos EUA. A maioria são porto-riquenhos, cubanos, dominicanos e mexicanos. Os números falam por si e mostram que o número de seguidores tem crescido após os mortíferos ataques na história dos EUA.

Embora inicialmente classificassem muitos muçulmanos como terroristas, existe agora uma maior consciência do problema. Nos EUA 20 mil pessoas convertem-se ao Islão em cada ano e é a religião que mais cresce em todo o mundo.

Wilfredo Ruiz Amr:

Ruiz, porto-riquenho que vive agora na Flórida diz que “a mesma notícia ruim e a má propaganda colocou o Islão em contacto com as pessoas.” “Desde 11 de Setembro, eu acredito que em qualquer jornal nacional não passam dois dias sem a palavra Islão ou muçulmanos aparecer em quaisquer de suas páginas. E na medida em que as pessoas estão vendo isso torna-se de interesse para saber mais sobre o Islão”, diz ele.

Amr Ruiz converteu-se em 2003, mesmo quando “os estereótipos estavam à flor da pele”, diz ele. O que o levou a buscar o Islão é que ele era um cristão não praticante e queria educar os seus filhos dentro de um quadro de fé. A sua família rejeitou-o e a sua mãe foi a mais relutante em aceitá-lo. Amr Ruiz tinha estudado toda a sua vida numa escola católica e sua mãe era um membro activo da Igreja Católica na sua comunidade.

“Disseram-me que eu estava errado, algumas pessoas disseram que o Islão não responde à nossa cultura e eu contestei dizendo de que país da América Latina era originário Jesus.”

Mas, eventualmente, a sua família aceitou pelo simples facto de que “as acções no Islão falam mais alto do que as palavras. Quando a minha família viu que não fumava, não bebia, rezava cinco vezes por dia, disse: que mal pode haver nisto”. Amr Ruiz afirma que os estereótipos contra os muçulmanos são em grande parte devido a equívocos instilados por pessoas de fora da religião.

Para além da crítica, Amr Ruiz não viveu qualquer situação mais grave, que não é o caso para todos os muçulmanos nos Estados Unidos depois de 11/09.

Khalid Salahuddin:

Khalid, que nasceu no Panamá, mas se mudou ainda criança com seus pais para a América, conta que um site antimuçulmano o acusou de apoiar a jihad ou guerra santa, luta extremista que levou Osama bin Laden a co-meter os actos terroristas de 2001. No entanto, apesar das alegações num artigo escrito num website não houve maiores consequências. “No meu trabalho o meu chefe disse-me que sabia que eu não estava envolvido nisso, por isso não o afectava”. A confiança das pessoas que gostavam dele foi instantânea e alguns ofereceram a sua ajuda, diz ele. Os seus conhecidos sabem o sentimento de Salahuddin relativamente aos ataques. “Isso foi uma desgraça, a verdade é que eu não podia acreditar que alguém que tivesse a mesma mentalidade que eu estava envolvido em alguma coisa. Quando eles fizeram isso deixaram de ser muçulmanos… A religião islâmica diz que se você matar uma só pessoa é como se matasse toda a raça da humanidade”.

Salahuddin disse que por causa das suas crenças, é muito difícil de acreditar que os ataques terroristas são um acto islâmico e que “só Deus sabe o que aconteceu.”

Roraima Aisha Kanar:

Roraima Aisha Kanar, cubana, concorda com Salahuddin. “Se eu tivesse viajado com meu marido (que tem um nome árabe) e ele tivesse estado naquele avião não o teriam acusado de ser um deles (terroristas)? E porque tenho eu de pensar que todos os que foram acusados e estão mortos hoje estavam envolvidos? “, diz ela.

Também relata que viveu na primeira pessoa a rejeição da comunidade após o 11/09. “Os que mais me julgaram foram os latinos, e como não sabiam que eu falava espanhol diziam coisas como, olha a pessoa que vem atrás de nós, anda rápido para não estar perto de nós, não sabemos o que pode acontecer.” No entanto, Kanar não ficava calada e dizia-lhes que não a julgassem pelo que não conheciam.

Mas isso não só aconteceu quando ela ia fazer compras ou saia fora de sua casa para qualquer tarefa, mas também com respeito ao seu trabalho. Kanar estava envolvida na venda de bens no momento e muitos clientes estavam distantes e constrangidos na sua presença. Mas Kanar disse que “nada pode ser alcançado sem paciência” e a sua atitude foi fazer com que as pessoas se sentissem confortáveis.

Quebrando os estereótipos:

Apesar de provenientes de outros países estas pessoas têm algo em comum: elas não estavam satisfeitas com o que lhes ofereceria o catolicismo. Kanar insiste que a Igreja Católica não forneceu respostas às suas perguntas. Além disso, refere que o que mais lhe chamou a atenção no Islão é que, diz ela, é uma religião cujo relacionamento com Deus é directo, sem intermediários, pois o seu comportamento, suas roupas e seu modo de agir é uma decisão pessoal ao aceitar o Islão como sua fé, e não algo imposto. Como muitos latinos tiveram que quebrar os estereótipos da sua família. Mas ao contrário do que alguns possam pensar, a sua mãe, uma católica praticante, não tinha pena que a sua filha não comungasse ou não assistisse à missa. “Um dia eu sentei-me com ela e ela disse-me que o que mais lhe doía é que eu não podia usar fatos de banho ou vestir roupas justas ou decotes como fazia antes”, diz ela. Mas para Kanar o próprio facto de as pessoas a valorizarem pela sua qualidade humana e não pelo que parecia foi um dos factores que a levaram a mudar de religião.

Kanar Amr Ruiz e Salahuddin concordam que a falta de aceitação para aqueles que não compartilham a fé cristã da maioria dos americanos é devida à ignorância. Um estudo realizado pelo Pew Hispanic Center diz isso, os hispânicos, especialmente os católicos, são o grupo com menos informações sobre sua própria religião e sobre as outras religiões, de acordo com a pesquisa nacional.

Hoje pode ter passado uma década desde a tragédia, mas o que não passou é a dor dos que perderam parentes no 11 de Setembro de 2001 e o ressentimento dos outros. Em 2 de Maio, o mundo testemunhou a forma como dezenas de pessoas nos Estados Unidos comemoraram a morte do autor dos ataques, Osama bin Laden. Mas, por anos, os muçulmanos nos Estados Unidos têm tentado dei-ar claro que o Alcorão condena qualquer acto terrorista e o que diz que mata em nome de Allah, mente.

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Crise Terminal do Capitalismo

Por: Leonardo Boff, teólogo e escritor. – Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2011/06/22/crise-terminal-do-capitalismo/

Crise terminal do capitalismo?

Tenho sustentado que a crise atual do capitalismo é mais que conjuntural e estrutural. É terminal. Chegou ao fim o génio do capitalismo de sempre adaptar-se a qualquer circunstância. Estou consciente de que são poucos que representam esta tese. No entanto, duas razões me levam a esta interpretação.

A primeira é a seguinte: a crise é terminal porque todos nós, mas particularmente, o capitalismo, encostamos nos limites da Terra. Ocupamos, depredando, todo o planeta, desfazendo seu sútil equilíbrio e exaurindo excessivamente seus bens e serviços a ponto de ele não conseguir, sozinho, repor o que lhes foi sequestrado. Já nos meados do século XIX Karl Marx escreveu, profeticamente, que a tendência do capital ia na direção de destruir as duas fontes de sua riqueza e reprodução: a natureza e o trabalho. É o que está ocorrendo.

A natureza, efetivamente, se encontra sob grave estresse, como nunca esteve antes, pelo menos no último século, abstraindo das 15 grandes dizimações que conheceu em sua história de mais de quatro bilhões de anos. Os eventos extremos verificáveis em todas as regiões e as mudanças climáticas tendendo a um crescente aquecimento global falam em favor da tese de Marx. Como o capitalismo vai se reproduzir sem a natureza? Deu com a cara num limite intransponível.

O trabalho está sendo por ele precarizado ou prescindido. Há grande desenvolvimento sem trabalho. O aparelho produtivo informatizado e robotizado produz mais e melhor, com quase nenhum trabalho. A consequência direta é o desemprego estrutural.

Milhões nunca mais vão ingressar no mundo do trabalho, sequer no exército de reserva. O trabalho, da dependência do capital, passou à prescindência. Na Espanha o desemprego atinge 20% no geral e 40% entre os jovens. Em Portugal 12% no país e 30% entre os jovens. Isso significa grave crise social, assolando neste momento a Grécia. Sacrifica-se toda uma sociedade em nome de uma economia, feita não para atender as demandas humanas, mas para pagar a dívida com bancos e com o sistema financeiro. Marx tem razão: o trabalho explorado já não é mais fonte de riqueza. É a máquina.

A segunda razão está ligada à crise humanitária que o capitalismo está gerando. Antes se restringia aos países periféricos. Hoje é global e atingiu os países centrais. Não se pode resolver a questão económica desmontando a sociedade. As vítimas, entrelaças por novas avenidas de comunicação, resistem, se rebelam e ameaçam a ordem vigente. Mais e mais pessoas, especialmente jovens, não estão aceitando a lógica perversa da economia política capitalista: a ditadura das finanças que via mercado submete os Estados aos seus interesses e o rentismo dos capitais especulativos que circulam de bolsas em bolsas, auferindo ganhos sem produzir absolutamente nada a não ser mais dinheiro para seus rentistas.

Mas foi o próprio sistema do capital que criou o veneno que o pode matar: ao exigir dos trabalhadores uma formação técnica cada vez mais aprimorada para estar à altura do crescimento acelerado e de maior competitividade, involuntariamente criou pessoas que pensam. Estas, lentamente, vão descobrindo a perversida-de do sistema que esfola as pessoas em nome da acumulação meramente material, que se mostra sem coração ao exigir mais e mais eficiência a ponto de levar os trabalhadores ao estresse profundo, ao desespero e, não raro, ao suicídio, como ocorre em vários países e também no Brasil.

As ruas de vários países europeus e árabes, os “indignados” que enchem as praças de Espanha e da Grécia são manifestação de revolta contra o sistema político vigente a reboque do mercado e da lógica do capital. Os jovens espanhóis gritam: “não é crise, é ladroagem”. Os ladrões estão refestelados em Wall Street, no FMI e no Banco Central Europeu, quer dizer, são os sumos-sacerdotes do capital globalizado e explorador.

Ao agravar-se a crise, crescerão as multidões, pelo mundo afora, que não aguentam mais as consequências da superexploracão de suas vidas e da vida da Terra e se rebelam contra este sistema económico que faz o que bem entende e que agora agoniza, não por envelhecimento, mas por força do veneno e das contradições que criou, castigando a Mãe Terra e penalizando a vida de seus filhos e filhas.

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Afeganistão: 10 anos de morte

Conselho Português para a Paz e Cooperação – (conselhopaz@cppc.pt)
(in Revista Al Furqán, nº. 183, de Setembro/Outubro.2011)

7 de Outubro de 2011. Assinalam-se hoje 10 anos do início da agressão e ocupação do Afeganistão por parte dos EUA e da NATO. São dez anos de sangrenta e injustificável barbárie contra o povo afegão, que já causou dezenas de milhares de mortos e feridos e milhões de deslocados.

Ocorrida na sequência dos ataques de 11 de Setembro de 2001 a Nova Iorque e sob o pretexto de ‘combater o terrorismo’, a agressão e ocupação do Afeganistão iniciou uma década em que o imperialismo, com destaque para os EUA, em conivência ou em aliança com outras potências e com a participação formal da NATO, elevou significativamente a sua agressividade e militarização, levando a cabo uma série brutal de ataques, invasões e ocupações em países soberanos, como o Iraque ou, mais recentemente, a Líbia – com o seu rol de centenas de milhar de mortos e estropiados e da degradação das condições de vida de milhões de seres humanos – numa estratégia de domínio global, de controlo de rotas e de recursos naturais, com destaque para os energéticos. Procurando assim, através da guerra e da usurpação da soberania e de recursos de outros povos, iludir ou encontrar uma (falsa) ‘saída’ para a profunda crise em que se encontra e para a qual arrasta o mundo.

Mas apesar de todos os seus esforços, longe de terem conseguido estabilizar a situação militar no terreno, as forças ocupantes no Afeganistão, que deveriam começar a retirada ao fim de uma década, anunciam agora a permanência por um período muito mais dilatado de tempo, num país destroçado, num contexto regional agravado e perante um futuro incerto.

De 2001 a 2011 assistimos a um novo recrudescimento da militarização das relações internacionais e da corrida aos armamentos protagonizada pelos EUA e seus aliados, que juntos representam mais de dois terços das despesas militares de todo o mundo. Agressão após agressão, renovam-se as ameaças de ingerência e agressão, como as que pairam sobre a Síria.

Assinalar cerca de 3650 dias de guerra no Afeganistão é denunciar e condenar a brutal violação de direitos humanos, a criação de autênticos campos de concentração, a prática da tortura, o sequestro e as prisões ilegais e secretas, a profusão de medidas atentatórias das liberdades e garantias dos cidadãos, o propagar do racismo, da intolerância e da xenofobia.

Assinalar os 10 anos de guerra no Afeganistão é denunciar e condenar a participação de Portugal na agressão e subsequentes missões na ocupação desse país, sinal de uma política externa subserviente aos interesses das grandes potências, dos EUA e da NATO, que de todo não está ao serviço dos interesses dos portugueses, bem pelo contrário, nem em consonância com a Constituição da República Portuguesa nem com a Carta das Nações Unidas.

É uma evidência para todos os amantes da paz que se impõe travar esta espiral de guerra e destruição que ameaça todo a humanidade. Por isso, assinalar uma década de guerra no Afeganistão é acima de tudo reafirmar a necessidade de lutar pela paz. A guerra não trouxe uma melhor vida, nem maior segurança para os povos. É tempo de afirmarmos uma vez mais a nossa profunda convicção que a luta dos povos pela paz é necessária, e que é ela que surgirá um mundo mais justo e fraterno.

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MISERICÓRDIA DIVINA

De: Mahomed Yiossuf Mohamed Adamgy

Uma leitura, um olhar, pontos de vista:
Por Maria Irene Bernardo Cardoso (*)
(in Revista Al Furqán, nº. 183, de Setembro/Outubro.2011)

Antes de mais, cumpre-me agradecer, ao meu Exmo. Amigo, Senhor Mahomed Yiossuf Mohamed Adamgy, a gentileza da oferta desta sua obra, Misericórdia Divina, bem como a liberalidade da confiança em mim depositada.
Torna-se difícil um comentário a este livro, tal é a densidade de nobres conceitos e de filosofia dos valores que ele encerra. E tudo isto numa linguagem clara, pedagogicamente esclarecedora, límpida. Corre-se o risco de … cair na paráfrase … ou mesmo no plágio…

Sente-se, amiúde, em alguns passos, o desejo de parar, para meditar as palavras: tão carregadas de sentido, tão esclarecedoras de uma mundividência tão diferente da nossa e, paradoxalmente, tão semelhante e tão próxima! Apesar das naturais diferenças – abissais, algumas.

Não vou aferir esta magnífica obra pela minha Religião – Cristã, Católica Apostólica Romana. Mas muitas das páginas deste livro mais me parecem as de um autor cristão. Repare-se, por exemplo, logo no início, na comovente dedicatória:

‘Em homenagem Ao meu falecido Pai, por ainda me fazer recordar a cada dia o milagre da vida. (…)’.
Aqui se patenteia o respeito, a veneração, pelo Pater Familias, que aponta para uma consciência muito funda da importância vital da instituição familiar, construída na doçura dos laços do sangue e do Amor inter-geracional; aqui se patenteia o respeito e o deslumbramento perante a Vida!

E na mesma página (nº 5):
‘Meu Senhor…
Ajuda-me a dizer a verdade diante dos fortes e a não dizer mentiras para ganhar o aplauso dos débeis.’
‘Quem se cala diante de algo errado faz-se participante do mesmo erro.’ (…)

E, como acima afirmei, não vou aferir este livro pela minha religião, porque seria errado fazê-lo: cada religião é um mundo que temos o dever sagrado, de respeitar: cada uma é o modo como cada Mulher, cada Homem, se dirige para Deus e chega até Ele, num caminho que é único, pessoal, irrepetível.

A pedra de toque pela qual avalio este livro é o conjunto de valores éticos nele defendidos, é o respeito pelos Direitos Humanos nele consagrados.

Ao distinto Autor, ficamos a dever uma obra magnífica que nos abre as portas do Islão e nos leva a dizer: ‘Louvado seja Deus, Senhor dos Mundos!’ in Misericórdia Divina, p. 15.

Com Mohamed Yiossuf Mohamed Adamgy, percorremos o Sagrado Alcorão e ficamos mais sabedores acerca desta outra Religião, o Credo pelo qual se regem os nossos Irmãos Muçulmanos.

Este é um livro de Paz e procura incrementar a construção espiritual de todo o ser humano. Na verdade esta obra está cheia de esclarecimentos e de incentivos ao cultivo dos valores humanos pelos quais todos os seres humanos deveriam reger-se: a Paz, a Justiça, a Tolerância, a Misericórdia, o respeito pela Liberdade…

A ‘jihád’ pacífica é incentivada, pois é a luta contínua, o esforço que deve ser feito, contra os nossos erros e contra os nossos vícios: é a auto-superação sem a qual nenhum ser humano se transcende nem faz Comunidade, nem atinge Deus. É o combate contra o Mal que nos habita. O verdadeiro Muçulmano tem de estar, sempre, numa atitude de ‘jihád’ pacífica. Segundo esta obra, a ‘jihád’ armada é consentida, apenas tolerada, em legítima defesa, no caso de os Muçulmanos serem agredidos. (Cf. p. 165, Misericórdia Divina).

‘A guerra é defendida (…) para lutar contra a opressão e a perseguição (…) só para defesa contra a agressão.’ (Misericórdia Divina, p. 134).

O livro Misericórdia Divina apresenta uma justa abertura às outras religiões. E passo a citar: ‘O que interessa é seguir uma revelação, ser fiel a algo que nos ultrapassa. Cada religião configura-se como uma cosmologia e uma ética completa em si mesma. O crente de qualquer religião deve informar-se a respeito da tradição em que se insere e deverá respeitar totalmente o outro, enquanto amostra do mesmo, sob uma forma diferente. Apenas na fidelidade ao carácter total de cada tradição é possível uma vida em harmonia com a Fonte.’ (Misericórdia Divina, p.113).

‘Humildade perante os outros, paz interior, consciência de que tudo tem a sua origem no Uno, realização de boas acções, cuidar da criação, respeito pelos diferentes, embelezar o Mundo. Esta é a atitude a ser adoptada por todo o Muçulmano (na verdade, por todo o crente) face a qualquer querela religiosa.’ (Misericórdia Divina, p.118). ‘…matar uma pessoa corresponde a matar toda a Humanidade, enquanto que salvar a vida de uma pessoa equivale a salvar a Humanidade inteira. (Alcorão, 5:32) (Citação inserta em Misericórdia Divina, p. 144).

‘A atitude religiosa tem de ser de humildade, distante do poder político e deve apelar à não-violência. A verdadeira religião é aquela que não se politizou.’ (Misericórdia Divina, p.144).

‘A verdade e a guerra nunca podem estar juntas. A verdade junta-se, apenas, com a paciência.’ (Misericórdia Divina, p.134).

Segundo o Autor desta obra, os actos criminosos praticados por Muçulmanos, e em nome da religião, mais não são do que deturpações do Islão e aproveitamento político, desonesto, portanto, do Sagrado Alcorão.

‘O Islão não pode ser responsabilizado por alguns muçulmanos se comportarem de outra maneira e por violarem as normas estabelecidas pela sua religião.’ (Misericórdia Divina, p. 136).

Os terroristas usam a religião muçulmana ou a sua terminologia religiosa, contudo os seus objectivos nada têm a ver com os ensinamentos religiosos do Islão. Assim, a palavra ‘fundamentalista’ surge, a maior parte das vezes, deturpada. No seu sentido real e positivo, ‘fundamentalista’ é qualquer Muçulmano que siga os fundamentos, os preceitos da sua religião. Consequentemente, tudo é fundamental e tudo é louvor a Deus (‘Allah’ em árabe): comer, dormir, acordar, trabalhar, orar, jejuar, praticar boas acções.

Como mulher, não posso deixar de fazer referência ao estatuto feminino no Islão. Assim, segundo o livro Misericórdia Divina, da autoria de Mahomed Yiossuf Mahomed Adamgy, ‘Homens e mulheres são iguais perante Deus e responsáveis pelos seus próprios actos. De modo idêntico, e uma vez no Além, ambos são recom-pensados pela sua fé e boas acções. E passo a citar o Sagrado Alcorão, de acordo com o livro Misericórdia Divina, p.233: ‘Jamais (disse Deus) deixarei perder a obra de qualquer de vós, seja homem ou mulher: procedeis uns dos outros (Alcorão, 3:195).’

‘E quem quer que faça boas acções, seja homem ou mulher, e seja crente, entrará no Paraíso e não será prejudicado, nem em tanto como num arranhão sobre o caroço de uma tâmara’. (Alcorão, 4:124).

‘E elas (as mulheres) têm os mesmos direitos sobre eles, como eles os têm sobre elas’. (Alcorão, 2:228). Contudo, apercebi-me de que uma versão francesa do Sagrado Alcorão diz o seguinte, na sura 2:228: ‘ (…) elles [les femmes] ont les droits équivalents à leurs obligations conformément à la bienséance. Mais les hommes ont, cependant, une prédominance sur elles. (**) Et Allah est Puissant et Sage.’ {Sublinhado meu} [Presses du complexe du Roi Fahd (…) impression du Saint Coran sous l’égide du Ministère des Affaires Islamiques des Waqfs de la Prédication et de l’orientation religieuse du Royaume de l’Arabie Saudite en l’an 1415 de l’Hégire.]

Se me é permitida uma sugestão, penso que seria imprescindível que houvesse uma uniformização exegética do Sagrado Alcorão. E penso que igualmente seria imprescindível a existência de um Chefe Supremo da Religião Islâmica, bem assessorado por grandes teólogos e conselheiros, que orientasse todos os fiéis Muçulmanos, segundo os valores do Sagrado Alcorão, que estão ancorados nos Direitos Humanos. Não existiriam (ou diminuiriam) os criminosos terroristas a reclamarem-se dos preceitos do Islão para semearem o sofrimento e a morte no mundo.

Contrariamente ao que muitos de nós (não muçulmanos) pensamos, ‘A mulher (islâmica) tem o direito de escolher com quem casar e, após o casamento, não altera o seu último nome, em virtude do respeito que tem para com a sua linhagem. /Economicamente falando, todos os homens e mulheres constituem uma entidade legal independente. Ambos têm direito a possuir bens próprios, envolverem-se no mundo dos negócios e a herdarem. O direito à educação é uma realidade para ambos os sexos, assim como o direito ao emprego (…)/ A busca do conhecimento é uma obrigação para todo o Muçulmano, seja homem ou mulher. (…) Impedir que uma pessoa tenha acesso à educação vai contra os ensinamentos do Islão.’ (Misericórdia Divina, pp.234-235).

Ainda relativamente à mulher, é muito interessante o que disse o Profeta Muhammad (s.a.w.):
‘Os crentes mais perfeitos são os melhores em conduta, e os melhores de entre vós são os que são melhores para as suas esposas.’ (Misericórdia Divina, p.235).

‘Quanto mais cívico e amistoso for um Muçulmano para com a sua esposa, mais perfeita é a sua fé.’ (Misericórdia Divina, p.235).

Conclui-se, pois, que os Muçulmanos mais crentes e mais coerentes são aqueles que mais estimarem as suas mulheres.

Sabemos que não acontece assim em muitas comunidades islâmicas, em que a mulher é verdadeiramente maltratada pelo marido e pela família, pelo que seria necessária uma ampla e profunda acção de formação, dirigida a todos os Muçulmanos, no sentido de se tornarem verdadeiramente humanos e afectuosos para com as suas mulheres. No sentido de cumprirem, para com todos, mas especialmente para com as suas mulheres, os preceitos ínsitos no Sagrado Alcorão, os princípios ínsitos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O mesmo direi relativamente a muitos Cristãos que maltratam as suas mulheres. Os números são esclarecedores e assustadores. Todos os anos é elevado, em Portugal, o número de senhoras assassinadas pelos seus maridos. Isto, sem falar em todo um conjunto de atitudes, múltiplas, que configuram crimes de violência doméstica, fonte de sofrimentos inenarráveis de vária ordem; causa devastadora da destruição da Família.

Penso mesmo que a Sociedade (por meio dos seus Governos e Sistemas Educativos) tem de repensar o modo de formar os seus jovens para a vida, o modo de formar os seus jovens para a assunção de casamentos que venham a ser realizados com mais consciência dos deveres e das responsabilidades para com o cônjuge. E para com os filhos. A Sociedade tem de tratar, seriamente, de incutir nas crianças e nos jovens o respeito pelos grandes valores de um Humanismo cada vez mais aperfeiçoado e respeitador relativamente a cada Pessoa e relativamente a todas as Pessoas. A Sociedade tem de defender a Família e os seus valores.

É preciso esclarecer, formar, dar a conhecer. O saber é fonte de mais humanismo, de elevação moral e espiritual.

Na página 235 do livro Misericórdia Divina, podemos ler que o Profeta Muhammad (s.a.w.) disse:
‘A procura de conhecimento é um dever de todo o Muçulmano (masculino e feminino)’.
‘Procurai o conhecimento desde o berço até ao túmulo’.

Com uma mundividência religiosa e cultural diferente, não me revejo nas vestes femininas do Islão. Mas aplaudo a filosofia que lhes sub-jaz: o recato feminino, o respeito por si mesma e pelos outros, a protecção e a defesa da mulher.

No tocante à ‘burqa’, o Autor Mohamed Yiossuf Mohamed Adamgy esclarece que a origem desta peça de vestuário ‘amplamente difundida no mundo islâmico’, ‘é certamente mais cultural do que religiosa’ e que ‘uma coisa é absolutamente clara: o Sagrado Alcorão não obriga a que [as mulheres] cubram o rosto.’ E acrescenta que muitas Muçulmanas usam ‘burqa’ por coerção social ou familiar e também há muitas que o fazem de forma voluntária. (Cf. Misericórdia Divina, pp.281-282).

Permito-me esclarecer que o véu usado pela Freiras Católicas não tem a finalidade de mostrar ‘a autoridade do homem’. (Cf. Misericórdia Divina, p. 268).

Esse véu faz parte do hábito religioso cujo uso remonta a épocas antigas em que, efectivamente, todas as mulheres se apresentavam com a cabeça coberta e as saias até aos pés. Até cerca dos anos 40 do século XX, as senhoras usavam chapéu. As senhoras das aldeias usavam lenço na cabeça. Até aos anos 60 do mesmo século XX, as mulheres católicas que não usavam chapéu ou lenço, iam à Igreja com um véu de renda na cabeça.

As Freiras Católicas continuam a usar véu em sinal de consagração a Deus. Penso que se trata também de uma questão de humildade e desprendimento das vaidades mundanas: cortam o cabelo demasiado curto, sem estilo nenhum, e usam o véu que, concomitantemente, é um sinal de recato, levado ao extremo, de acordo com a sua condição de mulheres consagradas. O hábito religioso é, na sua totalidade, um sinal de consagração a Deus, havendo Freiras Católicas que não usam hábito e se vestem de modo muito semelhante a qualquer outra mulher. As outras mulheres católicas não usam véu, nem dentro das igrejas, e consideram o seu cabelo como um adorno natural, que arranjam segundo o seu gosto pessoal, e de acordo com a textura do próprio cabelo.

Não me pronuncio sobre pontos específicos da Doutrina Muçulmana, por dois motivos, essencialmente:

  1. Porque não sou teóloga: nem muçulmana, nem cristã;
  2. Por uma questão de respeito pelo Islão e o seu Mistério. Considerando que cada Religião é detentora do seu Mistério (e dos seus Mistérios), da sua Sacralidade, da Inefabilidade que lhe é inerente, e que, no todo, envolvem os Crentes e configuram o seu mundo.

E passo a citar o Rev. mo Senhor Padre Dr. Anselmo Borges, Professor da Universidade de Coimbra, no seu livro Religião e Diálogo Inter-religioso, p.43:

‘Mas, por paradoxal que pareça, o Mistério compreende simultaneamente ‘a sua mais perfeita imanência’ ao homem e ao mundo. É próximo – o Alcorão diz que Alá é mais próximo ao homem que a sua própria jugular – e íntimo – interior intimo meo, diz Santo Agostinho; no interior da transcendência, dá-se a ‘identidade’ (…)’.

Muito mais haveria a dizer sobre o livro Misericórdia Divina, mas não devo alongar-me.

Resta-me renovar o meu agradecimento pela delicadeza da oferta desta obra, e felicitar o meu Exmo. Amigo, Senhor Mohamed Yiossuf Mohamed Adamgy, por este livro que é um contributo para a Paz. A Paz que em si encerra a doçura, a excelência e a magnanimidade de todos os valores morais e culturais de que o Mundo inteiro está tão carenciado.

Este livro é um contributo valioso para o conhecimento de uma outra Religião e de uma outra Cultura, o que nos enriquece e nos humaniza. Assim, na página 11 de Misericórdia Divina, lê-se:

‘O conhecimento das pessoas acerca umas das outras deve ser promovido; sem o conhecimento mútuo não haverá a compreensão mútua e sem a compreensão mútua não haverá respeito mútuo e sem respeito mútuo não haverá confiança mútua, e sem confiança mútua não haverá paz (…)’

(*) – Maria Irene Bernardo Cardoso nasceu em Moçambique, mais propriamente, em Melúli-Lar-de, Circunscrição de Môma (a cerca de 50 km de Angoche). Nasceu em 15 de Dezembro de 1948 e esteve em Moçambique, só até aos sete anos e meio. Adoro a sua terra – Moçambique inteiro!
Foi aluna (na primeira classe da primária) da Escola Infante D. Henrique, no Lumbo e frequentou a Catequese numa igreja improvisada, antes da construção da Igreja de Nossa Senhora de Fátima Peregrina, pelo Rev.mo Senhor Padre António Vieira Mendes.

Gostou imenso da Escola, linda, multirracial, e multicultural, com meninos de várias religiões, com lindos jardins, recreios amplos e… o Índico à frente; gostou imenso da Catequese, adorou Moçambique e, apesar de ter nascido junto ao rio Melúli, a terra de que melhor se lembra é mesmo, além do Lumbo e de Naguema (onde seu avô Joaquim Ber-nardo tinha uma machamba) a ilha de Moçambique que é especial: em beleza e em sortilégio que nos prende para sempre. Lembra-se de ter brincado no jardim do coreto e nos baluartes da fortaleza de São Sebastião. Esse seu avô foi um dos comandantes da fortaleza.

Veio para a Metrópole onde acabou a escola primária, tendo frequentado o Liceu Nacional de Lamego, até ao sétimo ano.
É Bacharel em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas (Português Francês) pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Foi professora no Colégio da Imaculada Conceição, em Lamego, das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras, no Colégio de Lamego, dos Monges Beneditinos, na Escola Industrial e Comercial de Lamego, fez estágio na Escola Técnica de Carlos Ama-rante em Braga e, depois, novamente em Lamego, foi professora efectiva da Escola Secundária da Sé e deu aulas, também no Seminário maior da mesma cidade de Lamego. Como professora e para além das aulas (que devem ser o centro da actividade docente), organizou algumas festas educativas e viagens de estudo.
Destacam-se os seguintes: homenagem a Gil Vicente, homenagem ao Padre António Vieira, homenagem a Eça de Queirós, homenagem ao escritor e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry. Visita de estudo ao Mosteiro da Batalha e ao campo de Aljubarrota; visita de estudo ao Mosteiro de Alcobaça e a Leiria; visita de estudo à ‘Casa de Tormes’ (em Santa Cruz do Douro, concelho de Baião) que foi pertença de Eça de Queirós.

Está aposentada desde Março de 2009.

(**) – NOTA DO DIRECTOR:

Em primeiro lugar, os meus sinceros agradecimentos a minha Exmª. Amiga Drª. Maria Irene Bernardo Cardoso, pelo belíssimo e significativo comentário tecido à volta do meu livro ‘Misericórdia Divina’. Em segundo lugar, e no que concerne ao citado versículo Alcorânico, 2:228 [‘ (…) elles [les femmes] ont les droits équivalents à leurs obligations conformément à la bienséance. Mais les hommes ont, cependant, une pré-dominance sur elles. Et Allah est Puissant et Sage.’] permita-me o seguinte esclarecimento, extensivo a todos os leitores interessados de Al Furqán:

Está o homem um grau acima da mulher?

Existem duas frases nos versículos do Alcorão que, lidas isoladamente, podem levar à conclusão de que o Alcorão estabeleceu a superioridade dos homens sobre as mulheres: 2:228 e 4:34. Na tradução do citado versículo 2:228, pode-se ler:

“…E elas (as mulheres) têm direitos sobre eles, como eles têm sobre elas, condignamente; embora os homens tenham um grau sobre elas”. (Alcorão 2:228)

Este versículo é citado, repetidamente, para provar que o Alcorão discrimina as mulheres. A expressão acima referida é “wa-lil-rijali ‘alaihinna darajatum = Embora os homens (maridos) tenham um grau (preeminência) sobre elas”.

Vejamos agora qual é a exegese feminista. Em primeiro lugar, trata-se de destacar todas as leis Alcorânicas que falam do casamento/divórcio e do relacionamento macho-fêmea estabelecido no Alcorão. Em segundo lugar, proceder a uma leitura analítica da lei em seu contexto, que respeite a mensagem do Alcorão como um todo, sem entrar em conflito com outros mandatos bem estabelecidos.

No caso da lei em questão, trata-se de enquadrá-la na concepção Alcorânica do casamento/divórcio. O casamento no Islão não é um Sacramento, mas um contrato pelo qual duas partes estabelecem um acordo de casamento. Esse acordo consiste de uma decisão consciente e feita publicamente, em que duas pessoas se reúnem para compartilhar suas vidas, ou parte de sua vida. Ainda que não seja um Sacramento, o casamento é primordial no Islão, uma vez que é através dele que o homem e a mulher participam activamente na ordem da Criação. Daí que o Profeta Muhammad disse: ‘o casamento é a metade do cumprimento da DIN (Religião)’ e ‘De todas as coisa lícitas, o divórcio é a mais detestável aos olhos de Deus’.

O Alcorão estipula o casamento como uma fonte de amor e calma, na qual dois cônjuges aparecem como peças complementares de um todo: ‘Ele foi Quem vos criou de um só ser e, do mesmo, plasmou a sua companheira, para que ele convivesse com ela…’. (Alcorão 7:189).

“E entre os Seus sinais está o de haver-vos criado companheiras da vossa espécie, para que com elas convivais; e colocou amor e piedade entre vós. Por certo que nisto há sinais para os sensatos”. (Alcorão 30:21).

“E Deus vos designou esposas de vossa espécie, e delas vos concedeu filhos e netos, e vos agraciou com todo o bem;” (Alcorão 16:72).

A partir daqui, os exegetas destacam o conjunto de versículos, que nos remetem ao tema mais específico de divórcio. No Alcorão, tanto os homens como as mulheres podem solicitar e obter o divórcio. No caso que seja o marido que se divorcia da mulher (talâq), o Alcorão deixa muito claro que ela deve manter a casa, excepto se ela cometeu adultério. Se a mulher rejeitar seu direito de preservar o lar conjugal, o homem deve “dar-lhe a provisão e libertá-la honrosamente”. No caso da mulher que se divorcia do homem (khul’), se houver uma razão realmente séria, é ela que deve devolver o dote recebido com o contrato de casamento.

A propósito, a tradução usual do árabe da palavra talâq (divórcio) por “repúdio” é uma falácia. Talâq vem do verbo “libertação”. O particípio passivo de talâq – mutlaq – significa ‘sem restrições, livre’. O talâq é o homem deixar ir a que era sua esposa, que não a retenha, conforme expressamente indicado no versículo Alcorânico:

‘Mantê-las adequadamente ou despedi-las adequadamente, mas não as reter pela força, tornando-se, assim, em transgressores’.

Por conseguinte, o versículo citado (2:228) em questão não está a falar sobre o status de homens e mulheres em termos absolutos, mas sim sobre os procedimentos relativos ao divórcio (ver os versículos subsequentes: 2:29 e seguintes). Com isso, torna-se evidente que a leitura da parte final do versículo, separado como um todo, é enganosa (como vimos o mesmo procedimento aplicado a demonização da Jihad).

“Este versículo (2:228) tem sido tomado como que a darajah (preeminência) existe entre todos os homens e todas as mulheres em qualquer contexto”. No entanto, a darajah desta discussão claramente está relacionado com o divórcio: os maridos têm uma vantagem sobre as mulheres. No Alcorão, esta vantagem é o marido ser individualmente capaz de pronunciar o divórcio para sua esposa sem árbitro ou auxílio. Por outro lado, o divórcio é concedido às mulheres somente após a intervenção de uma autoridade (por exemplo, um juiz). “Tendo em conta os pormenores, darajah (preeminência) neste versículo deve ficar circunscrita ao assunto em questão”. (1) Esta conclusão é reflectida na tradução espanhola do Alcorão, de Muhammad Asad:

“As divorciadas… E, na justiça, todos os direitos das mulheres [aos seus maridos] são iguais aos direitos destes com respeito a elas, embora os homens tenham prioridade [a este respeito] ” .(Alcorão 2:228)

Asad traduz darajah, em 2:228, como prioridade ‘ (em inglês, ‘precedence’). Esta tradução é contrastante com aquela oferecida por outros tradutores (‘têm precedência’), (‘têm um grau ‘) e (‘têm um grau acima’). Mas a diferença fundamental é que Assad traduz o versículo tendo em conta o pleno significado da passagem onde se encaixa. Isto torna-se evidente que esta ‘prioridade dos homens sobre as mulheres’ é só ‘aqui’, ou seja: no que se refere ao pedido de divórcio (2). Se isso não fosse suficientemente claro, no versículo seguinte a 2:228 estabelece-se o direito das mulheres a solicitar o divórcio:

“O divórcio revogável só poderá ser efetuado duas vezes. Depois, tereis de conservá-las convosco dignamente ou separar-vos com benevolência. Está-vos vedado tirar-lhes algo de tudo quanto lhes haveis dotado, a menos que ambos temam contrariar as leis de Deus. Se temerdes (vós juízes) que ambos as contrariem, não serão recriminados, se ela der algo pela vossa liberdade. Tais são os limites de Deus, não os ultrapasseis, pois; aqueles que os ultrapassarem serão iníquos.” (Alcorão Sura 2:229).

Sobre este versículo Muhammad Asad diz:
“Todas as autoridades eruditas concordam que este versículo se refere ao direito incondicional por parte da esposa a divorciar-se de seu marido; tal dissolução do casamento, a pedido da esposa, é chamada Khul. Há uma série de tradições bem autenticadas nas quais Jamie, a esposa de Sábit ibn Kais, veio pedir ao Profeta para se divorciar de seu marido, dizendo que, apesar do seu carácter e irrepreensível conduta, o desagradava tanto como cair na incredulidade depois de aceitar o Islão’. “O Profeta, então ordenou que ela devolvesse ao Sábit o pomar que ele tinha dado como dote (mahr) por seu casamento e ordenou a dissolução do casamento.” (3)

Qual é então a prioridade do homem com relação às mulheres no assunto do divórcio? A diferença entre o divórcio (talâq) masculino e o feminino (khul’) é que, neste último caso das mulheres não se comunica o divórcio diretamente ao marido, mas vai-se ter com um juiz para assegurar os seus direitos. Mediante esta diferença de procedimento o que se pretende é proteger a mulher de qualquer vingança por parte do marido. No período de espera, o marido pode pedir para ter relações sexuais, se ele quiser a reconciliação, e sem que isto possa ser considerado relações fora do casamento (que seria haram, ilícito), mas a esposa tem o direito de recusar.

Em suma: não há nada no presente versículo que permita pensar que o Alcorão coloca o homem acima da mulher, nem para estabelecer a subordinação da mulher em relação ao homem. Neste ponto torna-se evidente que os tradicionais exegetas projectaram um prévio olhar patriarcal, um preconceito que tem distorcido o que é uma mera diferença de procedimento até convertê-lo num símbolo da “superioridade do macho”, uma visão muito pouco elevada da natureza humana.

Para completar esta referência ao versículo 2:228, devo referir-me a primeira parte do versículo 4:34 ao famoso conceito do qaw-wama. Menciono duas versões, cuja leitura nos faz pensar imediatamente numa concepção pa-triarcal da família:

‘Os homens são os protetores das mulheres, porque Deus dotou uns com mais (força) do que as outras, e pelo seu sustento do seu pecúlio…’. (Tradução por Samir El Hayek).

‘Os homens têm autoridade sobre as mulheres, pelo que Deus preferiu alguns a outros, e pelo que despendem de suas riquezas. …’. (Tradução por Helmi Nasr).

A palavra-chave é qawwamona da raiz Q-W-M. Em árabe, esta raiz refere-se para os meios de subsistência e para os meios de sobrevivência, alimentar (QiWaaM). Qâma bil yatim significa “manteve uma órfã”. Assim, o termo Alcorânico ‘Ar-rijalu qawwamona ‘ala an nissai’ significa “homens são mantedores das mulheres,” no sentido de fornecer alimentos para a sua subsistência. Mas isso não é tudo: em continuação o versículo estabelece a razão: o facto de gastar de seus bens nela. Não existe a menor noção de superioridade dos homens sobre as mulheres, como pode dar a entender as traduções citadas, mas condicionalidade: os homens têm um grau de proeminência como única e exclusivamente quando são os mante-dores. A tradução de Muhammad Asad parece mais consistente com o texto original do anterior:

‘Os homens são responsáveis pelo cuidado das mulheres em virtude do que Deus os tem concedido em maior abundância a eles do que a elas, e possam dar-lhes o que elas gastam de seus bens’.

O que diz o Alcorão, simplesmente, é que os homens têm uma responsabilidade acrescida como mantedores da família. O qawama é, portanto, condicional. Não se trata em caso de um princípio universal abstracto. Isto é evidente pelo facto de que as mulheres no Islão têm pleno direito de trabalhar, sem restrição e, portanto, podem também ser mantedoras de suas famílias. Com isso em mente, um significado implícito do versículo seria que as mulheres teriam proeminência sobre seus maridos no caso de elas serem as mantedores da família, como acontece muitas vezes. Tal como afirma o alim (erudito) argelino Tahar Mahdi:

“Qawâma concedida ao homem, não é porque ele é do sexo masculino, mas apenas pelos meios que ele possui: tanto pode ser a capacidade física como material”. O que significa que, se esta capacidade, num casal, recai sobre a mulher, ela deve exercer esse famoso qawâma. “Por conseguinte, não há nenhuma exclusividade masculina, a respeito”. (4)

Que é puramente lógico: quem tem o controlo das fontes de subsistência tem uma responsabilidade adicional e, em certo sentido, um sentido de primazia, sem que isto signifique cancelar o princípio básico de cooperação e apoio mútuo. É para dizer que este versículo do Alcorão não estabelece um padrão de funcionamento numa família islâmica, mas que esclarece que não existe uma predominância de um dos cônjuges sobre outro, excepto no controlo de recursos económicos. Que, por outro lado, é evidente (5).

E Allah é Quem sabe melhor.

M. Yiossuf M. Adamgy

Notas

  1. W. Amina. O Alcorão e a Mulher. Penerbit Fajar Bakti Sdn Bhd. Malásia (relançada pela Oxford University Press), 1992.
  2. Outros tradutores do Alcorão em inglês, tais como Marmaduke Picktall e Yusuf Ali também são muito claros nas suas traduções.
  3. A Mensagem do Alcorão, ed. Junta Islâmica, p. 51.
  4. Tahar Mahdi, O conceito de ‘qawâma’: (web-islam.com).
  5. W. Amina analisa este versículo de forma aprofundada no Qur’án and Women, p. 69 e seguintes.
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Estão os Muçulmanos divididos entre “moderados” e “fundamentalistas”?

(in Revista Al Furqán, nº. 183, de Setembro/Outubro.2011)

A expressão integrista (enquanto sinónimo de fundamentalista) só se torna pejorativa quando se refere à religião; mas não quando se trata de medicina integrativa, ou quando se refere a uma pessoa íntegra.

Prezados Irmãos, Assalamu Alaikum:

Construiu-se, a nível mediático, uma distinção entre os muçulmanos considerados “radicais” e “moderados”, aonde a palavra “radical” rapidamente é substituída pela expressão “fundamentalista” ou “integrista”, apresentando-se estes termos sempre como sinónimos de retrógrado e fanático. Os “moderados” seriam aqueles que defendem a plena adaptação do Islão de acordo com a modernidade ocidental.

Nesta, e noutras classificações, fica latente a incapacidade de compreensão que o Islão gera, num mundo estruturado sobre imagens e estereótipos.

Para a maioria dos jornalistas, a religião não pode ser mais que algo primitivo face ao mundo civilizado. Quando nos chamam “muçulmanos moderados” na realidade estão a pensar “primitivos, mas pouco”. Nós sorrimos perante estas classificações. A submissão a Deus (e ao Islão) não pode ser outro senão um acto íntegro, no qual o ser humano abandona toda a idolatria, a começar pelo despojo de todo o dogmatismo, de todas as projecções realizadas sobre o mundo, para garantir a adesão ao incondicionável. Não há um Islão moderado, porque não há nenhum Islão não-moderado, pela mesma lógica: se alguém é fanático, significa que fez da sua religião uma barreira, um ídolo em desacordo com outras religiões, e, portanto, não aceitou a diversidade como um dos seus símbolos mais maravilhosos. No entanto, também não há um islâmico não-fundamentalista, se tomarmos a palavra no seu sentido mais preciso: ele quererá sempre preservar a sua integridade, a perspectiva da vida enquanto um todo indivisível. Dito de outra forma; o Islão é uma abertura integral para a Unicidade da diversidade, e essa integração exclui a sectorização.

A palavra integrista (fundamentalista) só é pejorativa quanto se fala de religião, mas não quando se trata de medicina integrativa, ou de uma concepção integrada na natureza, nem quando se remete a uma pessoa íntegra. Se ser integrista é tentar recuperar o Islão como um modo de vida orgânico, uma categoria de estilo de vida, que abrange todos os aspectos da vida, claro que somos fundamentalistas.

No entanto, para a imprensa, um fundamentalista é alguém que quer voltar ao mundo da Idade Média, da qual se tem uma imagem pré-fabricada. Pois de que Idade Média se trata? Dessa época em que Paris era um pântano e a Córdoba tinha um milhão de habitantes e uma biblioteca com milhares de volumes que foram perdidos para sempre? Quando ouvimos o termo “Idade Média” como sinónimo de escuridão, não podemos deixar de ficar surpresos, uma vez que essa época representa por exemplo o apogeu cultural de Espanha. Neste e noutros casos, é óbvio o colonialismo intelectual.

Para ilustrar a versão entre “moderados” e “fundamentalistas”, a imprensa só se refere ao wahhabismo; essa corrente originária da Península Arábica e que se caracteriza pelo fanatismo, pelo totalitarismo; um puritanismo extremo. A aplicação de castigos corporais, a discriminação das mulheres e das minorias religiosas… tudo isto é apresentado como a “ortodoxia” perante a qual os “moderados” apresentam uma corrente modernista. No entanto, este esquema, é, de novo, completamente falso. O wahhabismo não é senão uma corrente dentro do Islão, e assim foi reconhecida desde o início e a partir do seu nascimento.

A concepção da ortodoxia como algo rígido e imóvel perante a modernidade como a superação do dogmatismo faz parte integram-te da mitologia ocidental, mas no Islão sucede o oposto. O “ortodoxo” – de acordo com a mensagem do Alcorão e do exemplo do Profeta (paz e bênçãos estejam com eles) – seria o pleno reconhecimento das outras tradições e a ausência de fanatismos ou atitudes exageradas na prática Islâmica; a ausência de instituições hierárquicas; a tomada de decisões em assembleia; a igualdade entre homens e mulheres; a solidariedade e o apoio mútuo enquanto peças de articulação sociais; a liberdade de consciência e o direito de todos de se desenvolverem dentro dos limites estabelecidos por Deus.

A recuperação do Islão passa por viver plenamente esses valores, de forma íntegra. Poder-se-iam citar Ahadices e o Alcorão reforçando tudo isto… mas seria inútil, porque seremos sempre classificados como “muçulmanos moderados”, “heterodoxos” ou mesmo “progressistas”, por forma a salvaguardar a definição contrária. Que maçada!

Por outro lado, o termo kafir possui uma definição teológica e judicial, e outra definição popular, política e social, que não se devem confundir. Na consciência de muitos muçulmanos devotos, um cristão ou um judeu de-votos, são considerados crentes, enquanto um agnóstico de nome árabe ou persa é considerado descrente. E o anátema de kufr, deixa de referir-se somente às pessoas de fora, passando a incluir também vários grupos de dentro do próprio mundo islâmico. Actualmente, apesar de alguns muçulmanos alegarem que os “descrentes” serão responsáveis pelo massacre da cultura secular do ocidente, utilizam a mesma designação para aqueles que, dentro do próprio Islão, ainda que formalmente muçulmanos, aceitam e pregam ideias secularizadas que negam os próprios fundamentos da revelação islâmica. Na realidade, a laicidade é o inimigo comum de todas as tradições abraâmicas, e a erosão da autoridade moral nas sociedades seculares que observamos hoje em dia é problemática, tanto para judeus e cristãos, como para os muçulmanos.