(in Revista Al Furqán, nº. 183, de Setembro/Outubro.2011)
A expressão integrista (enquanto sinónimo de fundamentalista) só se torna pejorativa quando se refere à religião; mas não quando se trata de medicina integrativa, ou quando se refere a uma pessoa íntegra.
Prezados Irmãos, Assalamu Alaikum:
Construiu-se, a nível mediático, uma distinção entre os muçulmanos considerados “radicais” e “moderados”, aonde a palavra “radical” rapidamente é substituída pela expressão “fundamentalista” ou “integrista”, apresentando-se estes termos sempre como sinónimos de retrógrado e fanático. Os “moderados” seriam aqueles que defendem a plena adaptação do Islão de acordo com a modernidade ocidental.
Nesta, e noutras classificações, fica latente a incapacidade de compreensão que o Islão gera, num mundo estruturado sobre imagens e estereótipos.
Para a maioria dos jornalistas, a religião não pode ser mais que algo primitivo face ao mundo civilizado. Quando nos chamam “muçulmanos moderados” na realidade estão a pensar “primitivos, mas pouco”. Nós sorrimos perante estas classificações. A submissão a Deus (e ao Islão) não pode ser outro senão um acto íntegro, no qual o ser humano abandona toda a idolatria, a começar pelo despojo de todo o dogmatismo, de todas as projecções realizadas sobre o mundo, para garantir a adesão ao incondicionável. Não há um Islão moderado, porque não há nenhum Islão não-moderado, pela mesma lógica: se alguém é fanático, significa que fez da sua religião uma barreira, um ídolo em desacordo com outras religiões, e, portanto, não aceitou a diversidade como um dos seus símbolos mais maravilhosos. No entanto, também não há um islâmico não-fundamentalista, se tomarmos a palavra no seu sentido mais preciso: ele quererá sempre preservar a sua integridade, a perspectiva da vida enquanto um todo indivisível. Dito de outra forma; o Islão é uma abertura integral para a Unicidade da diversidade, e essa integração exclui a sectorização.
A palavra integrista (fundamentalista) só é pejorativa quanto se fala de religião, mas não quando se trata de medicina integrativa, ou de uma concepção integrada na natureza, nem quando se remete a uma pessoa íntegra. Se ser integrista é tentar recuperar o Islão como um modo de vida orgânico, uma categoria de estilo de vida, que abrange todos os aspectos da vida, claro que somos fundamentalistas.
No entanto, para a imprensa, um fundamentalista é alguém que quer voltar ao mundo da Idade Média, da qual se tem uma imagem pré-fabricada. Pois de que Idade Média se trata? Dessa época em que Paris era um pântano e a Córdoba tinha um milhão de habitantes e uma biblioteca com milhares de volumes que foram perdidos para sempre? Quando ouvimos o termo “Idade Média” como sinónimo de escuridão, não podemos deixar de ficar surpresos, uma vez que essa época representa por exemplo o apogeu cultural de Espanha. Neste e noutros casos, é óbvio o colonialismo intelectual.
Para ilustrar a versão entre “moderados” e “fundamentalistas”, a imprensa só se refere ao wahhabismo; essa corrente originária da Península Arábica e que se caracteriza pelo fanatismo, pelo totalitarismo; um puritanismo extremo. A aplicação de castigos corporais, a discriminação das mulheres e das minorias religiosas… tudo isto é apresentado como a “ortodoxia” perante a qual os “moderados” apresentam uma corrente modernista. No entanto, este esquema, é, de novo, completamente falso. O wahhabismo não é senão uma corrente dentro do Islão, e assim foi reconhecida desde o início e a partir do seu nascimento.
A concepção da ortodoxia como algo rígido e imóvel perante a modernidade como a superação do dogmatismo faz parte integram-te da mitologia ocidental, mas no Islão sucede o oposto. O “ortodoxo” – de acordo com a mensagem do Alcorão e do exemplo do Profeta (paz e bênçãos estejam com eles) – seria o pleno reconhecimento das outras tradições e a ausência de fanatismos ou atitudes exageradas na prática Islâmica; a ausência de instituições hierárquicas; a tomada de decisões em assembleia; a igualdade entre homens e mulheres; a solidariedade e o apoio mútuo enquanto peças de articulação sociais; a liberdade de consciência e o direito de todos de se desenvolverem dentro dos limites estabelecidos por Deus.
A recuperação do Islão passa por viver plenamente esses valores, de forma íntegra. Poder-se-iam citar Ahadices e o Alcorão reforçando tudo isto… mas seria inútil, porque seremos sempre classificados como “muçulmanos moderados”, “heterodoxos” ou mesmo “progressistas”, por forma a salvaguardar a definição contrária. Que maçada!
Por outro lado, o termo kafir possui uma definição teológica e judicial, e outra definição popular, política e social, que não se devem confundir. Na consciência de muitos muçulmanos devotos, um cristão ou um judeu de-votos, são considerados crentes, enquanto um agnóstico de nome árabe ou persa é considerado descrente. E o anátema de kufr, deixa de referir-se somente às pessoas de fora, passando a incluir também vários grupos de dentro do próprio mundo islâmico. Actualmente, apesar de alguns muçulmanos alegarem que os “descrentes” serão responsáveis pelo massacre da cultura secular do ocidente, utilizam a mesma designação para aqueles que, dentro do próprio Islão, ainda que formalmente muçulmanos, aceitam e pregam ideias secularizadas que negam os próprios fundamentos da revelação islâmica. Na realidade, a laicidade é o inimigo comum de todas as tradições abraâmicas, e a erosão da autoridade moral nas sociedades seculares que observamos hoje em dia é problemática, tanto para judeus e cristãos, como para os muçulmanos.