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O Nascimento da Modernidade Islâmica

(Opinião – 15/03/2011 – Autor: Pepe Escobar* – Tradução: Rebelión) – Versão Portuguesa: Al Furqán

A crença de que o Islão e o Ocidente são antípodas é coisa de tarados tipo apresentadores da Fox News

*Pepe Escobar é autor de ‘Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War’ (Nimble Books, 2007) e ‘Red Zone Blues: a snapshot of Baghdade during the surge’.
O seu último livro é ‘Obama does Globalistan’ (Nimble Books, 2009).
Pode ser contactado em: pepeasia@yahoo.com.
Fonte: http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/MC12Ak01.html

Quando me deslocava pelas estradas de Afeganistão e Paquistão antes e depois do 11 de Setembro, há dez anos, o volume que levava comigo na mochila era uma edição em francês da ‘Jihad’ de Gilles Kepel. Noite após noite, em muitas ocasiões em casas de adobe e perante intermináveis chávenas de chá verde, fui, pouco a pouco, empapando-me da tese principal: que o Islão político não estava precisamente no auge, mas, de facto, em decadência.

Por um lado, tínhamos organizações como al-Qaida, autodesignadas vanguardas dedicadas a acordar do seu sono as massas muçulmanas a fim de desencadear uma revolução global islâmica; na verdade, não eram senão versões muçulmanas das Brigadas Vermelhas italianas e da Fracção do Exército Vermelho alemão.

Do outro lado, tínhamos islamitas como, por exemplo, os do Partido turco do Desenvolvimento e da Justiça da Turquia, prontos para submergir-se na democracia parlamentária de estilo ocidental e que apostam pela soberania do povo, não de Allah.

No apogeu da ‘guerra contra o terror’ – com todos esses B52 a bombardear Tora Bora sem reparar em que Ussama bin Laden escapara já para o Paquistão -, no Ocidente tendia-se a agrupar a maioria dos muçulmanos, quando não todos, no catálogo de jihadistas insensatos.

Concordo com Kepel em que o ‘choque das civilizações’ não era mais que um conceito estúpido, grosseiramente investigado e instrumentalizado pelos neoconservadores para legitimar a sua ‘cruzada’. Mas isso precisava que a história o corroborasse de alguma maneira.

Dez anos depois, pode-se finalmente dizer que a análise de Kepel dava no cravo. O islamismo de núcleo duro, estilo al-Qaida, é um fracasso de bilheteira no mundo muçulmano. Em tudo o que se refere à sua miríade de manifestações – no Iraque, no Magrebe, na península Arábica -, a al-Qaida não é senão uma seita desesperada, destinada à lixeira da história, igual a todos esses ditadores apoiados pelo Ocidente, como o derrotado presidente tunisino, Zine el-Abidine ben Ali, e o ex-presidente do Egipto, Hosni Mubárak, que costumavam ser os pilares da luta do Ocidente contra o Islão radical.

Kepel está hoje à frente do Programa de Estudos para o Mediterrâneo e o Oriente Próximo, da lendária Faculdade de Ciências Políticas, em Paris. Num artigo escrito para o diário italiano ‘La Repubblica’, sela definitivamente a vitória do Islão como democracia em frente do Islão como vanguarda ‘revolucionária’. Salienta-mos a seguinte citação:

‘Na actualidade, os povos árabes ultrapassaram esse dilema ou constrição entre Ben Ali e Bin Laden. Voltaram a entrar numa história universal que viu a queda dos ditadores na América Latina, dos regimes comunistas no Leste da Europa e também dos regimes militares em países muçulmanos não árabes, como a Indonésia ou a Turquia’.

O local à procura do universal

E este é o ponto decisivo: os povos árabes estão agora a começar a construir a sua própria, embora vacilante, modernidade. Kepel pergunta-se porque se produziu na Tunísia a primeira revolução e descobre que a consigna principal estava em francês: ‘Ben Ali, degage’ (‘Ben Ali, vai embora’). A consigna foi fielmente adoptada – ipsis litteris – pelos egípcios, num país em que muito pouca gente fala francês. Adoptaram tal lema revolucionário porque o ouviram na Al-Jazira. Isto permite a Kepel concluir que estas revoluções actuais têm as raízes tanto na cultura local como nas aspirações universais.

E, se bem que os sintomas sejam os mesmos – desemprego, pobreza, corrupção, ausência total de liberdade -, são revoluções diversas que lutam para poder alcançar o poder com estratégias diferentes. Alguns deitam lenha na fogueira dos problemas tribais ou confessionais, outros apostam em si próprios ou em se imunizar da interferência ocidental.

O problema é que os hagiógrafos do império estão a interpretar mal a diversidade de métodos empregados pelos tiranos para esmagar estas revoluções, para assim poder legitimar melhor a aura dos repressivos ‘rapazes bons’ escolhidos

Assim, temos Robert D. Kaplan, vinculado ao Pentágono, a tentar fazer acreditar à opinião pública que se trata de déspotas ilustrados (a dinastia Al-Khalifa no Bahrein, os dois reis Abdulá, o da Arábia Saudita e o da Jordânia) defronte irredimíveis ditadores diabólicos (como Muamar al-Khadafi).

Como se a maioria xiita no Bahrein precisasse dos Al-Khalifa sunitas para promover a formação de uma classe média: condição prévia para o estabelecimento de uma democracia. Os Al-Khalifa não se importaram nunca nem um pouquinho com promover uma classe média, porque, dessa forma, do seu autocrático sistema ‘aberto aos negócios’ só se beneficiava uma pequena oligarquia sunita.

E o raciocínio para defender esses tiranos escolhidos é que alguns países não têm base institucional para uma transição para a democracia; portanto, metem no mesmo saco a Líbia tribal, dirigida pelo ‘malvado’ Khadafi, e os emirados do golfo Pérsico, dirigidos por ‘aceitáveis’ reis e emires.

A estender pontes

Por muito que a modernidade ocidental esteja em crise, isso não significa que o mundo esteja a sofrer o assédio de uma guerra religiosa moderna. A crença de que o Islão e o Ocidente são antípodas é coisa de tarados tipos apresentadores da Fox News. O mundo está a ser testemunha de uma nova cristianização da Europa, bem como de uma nova evangelização dos Estados Unidos. Isto demonstra que modernidade e religião são compatíveis, quer no Ocidente, quer no Oriente Próximo.

Podem proceder de diferentes latitudes culturais: o Ocidente, da decadência da modernidade, e o Oriente Próximo, da decadência do fundamentalismo religioso, para tratar de convergir no mesmo lugar: uma ponte de diálogo entre o Oriente e o Ocidente.

O que Kepel quer essencialmente mostrar é que a Europa e o mundo árabe não têm outra hipótese senão tentar construir uma civilização híbrida – não só em termos de movimentos de capital, bens e serviços, mas também mediante sólidos investimentos na cultura e na educação – do mar do Norte ao golfo Pérsico, com o Mediterrâneo como centro nevrálgico. Isto implica que a Fortaleza da Europa deverá voltar a examinar o seu lugar no mundo e que a Organização do Tratado do Atlântico Norte não tentará condicionar o diálogo mediterrânico.

É um caminho longo e perigoso, com uns quantos Khadafis, Al-Khalifas e Abdulás que há que deitar fora.

O mundo árabe está a sofrer muitos traumas durante demasiado tempo, quase um século desde que as potências coloniais do Reino Unido e da França atraiçoaram a Nação Árabe e repartiram a terra.

A prova autêntica da autoproclamada ‘missão civilizadora’ do Ocidente está precisamente aí, em dar as boas-vindas e em ajudar, com todo o coração, a que o Mundo Árabe alcance a esfera da modernidade.

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