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Um Deus, muitos nomes

No tumulto dos acontecimentos actuais e da discussão acerca do embate civilizacional, as pessoas querem, muitas vezes, perceber o que veneram os muçulmanos.

Muitos juDeus, cristãos e muçulmanos acertadamente declaram que as suas respectivas religiões invocam o Deus de Abraão, paz esteja com ele, mas muitos são os indivíduos da direita religiosa americana que fazem questão de negar esta base comum. Para Pat Robertson, membro da Aliança Cristã, os problemas a nível mundial giram em torno do facto de Hubal, o Deus da lua de Me-ca, conhecido como Allah, (1) ser ou não o Deus Supremo, ou se essa entidade suprema é antes o judaico-cristão Jehovah, o Deus da Bíblia. O filho de Billy Graham, Franklin Graham, o proeminente evangelista que dirigiu a invocação na tomada de posse presencial de George W. Bush em 2001, insiste que muçulmanos e cristãos não veneram o mesmo Deus.

No mesmo sentido, William Boykin, um general de topo do Pentágono, atraiu a atenção a nível internacional ao afirmar que o “seu Deus” era o Deus verdadeiro, sendo um Deus maior que o Deus muçulmano, que considerou não ser mais do que um “ídolo”. Estas foram, sem dúvida, afirmações provocatórias; no entanto, a administração Bush-Cheney optou por não responsabilizar o seu autor. (2)

Que Allah e o Deus bíblico são idênticos é um facto evidente, uma vez tida a etimologia da própria Bíblia. (3)

De acordo com o ponto de vista da teologia Islâmica e da história da salvação (4), é simplesmente inaceitável considerar que o Deus da Bíblia e o Deus do Alcorão são outra que não a mesma entidade, ainda que nos últimos anos muitos muçulmanos falantes da língua portuguesa tenham desenvolvido o preconceito de evitar o uso da palavra “Deus”, partindo da falsa pretensão de que a palavra árabe “Allah” possui uma garantia linguística de autenticidade teológica.

Não é apenas na Bíblia e no Alcorão, nem em outro qualquer credo religioso ou grupo de homens, que se apresentam nomes belos para Deus. As línguas semíticas, como o hebreu, o aramaico e o árabe, possuem ricos glossários de nomes divinos; no entanto, aqueles que os invocaram nunca tiveram o monopólio sobre Deus.

A um nível mais fundamental, toda a humanidade partilha o legado do conhecimento do Ser Supremo e a capacidade de Lhe atribuir nomes, o que, de acordo com a perspectiva Islâmica, reflecte o conhecimento inato que a humanidade tem de Deus, apoiada no seu remoto e primi-tivo legado de profecia universal.

Quanto à palavra portuguesa “Deus”, a inglesa “God”, a francesa “Dieu”, etc., ela mantém as suas raízes primordiais, pertencendo ao tesouro dos antigos nomes divinos, sendo uma das designações mais expressivas para o Ser Supremo. A continuada relutância revelada por alguns muçulmanos falantes de língua portuguesa e inglesa em integrar a palavra “Deus” ou “God” serve apenas para reforçar a carência de fundamentos das suas reivindicações religiosas. É premente que os muçulmanos falantes da língua portuguesa comuniquem de forma coerente e a integração da palavra “Deus” é um passo importante para se alcançar esse objectivo.

NOTAS:

1. Tal como é exposto mais a frente, Hubal não tinha qualquer relação de carácter histórico ou teológico com Allah.

2. Estas referências estão disponíveis e são de fácil acesso na Internet. No entanto, sinto-me obrigado a mencionar um excelente editorial do jornal New York Times (de 28 de Janeiro de 2004), da autoria de John Kearney, tendo sido escrito por ocasião da peregrinação muçulmana a Meca, um ritual islâmico intimamente relacionado com Abraão. John Kearney censurou a recusa da direita religiosa em aceitar o facto de a crença Abraâmica do Deus Bíblico ser comum ao Islão e a depreciação que o mesmo movimento faz relativamente à teologia muçulmana, insistindo que esse tipo de obscurantismo era perigoso e imperdoável.

3. A etimologia é o estudo da história linguística das palavras, investigando o seu desenvolvimento numa determinada língua, recorrendo com frequência à comparação entre cognatos em línguas e dialectos relacionados. As palavras semíticas Allah (Deus no Alcorão), Elo-him (Deus do Antigo Testamento) e Allah (Deus do aramaico/ síriaco no Novo Testamento) são cognatos etimológicos, tal como o editorial de John Kearney salientou e é demonstrado mais a frente.

4. Utilizo a expressão “história da salvação” para me referir à concepção religiosa da forma como Deus traz a salvação no decurso da história da humanidade. Para os juDeus, a história da salvação centra-se nas ramificações do pacto especial de Deus com os Filhos de Israel. Na teologia cristã, a história da salvação culmina com a crucificação de Cristo. A história da salvação de acordo com a pers-pectiva muçulmana afirma-se pela crença na primordial mensagem da profecia universal, culminando na actividade de Muhammad como Profeta, explicando e justificando tudo aquilo que aconteceu antes.

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