Por: M. Yiossuf M. Adamgy
O Ocidente e o Mundo Muçulmano são universos multi-facetados, multi-culturais e multi-religiosos, apesar de serem considerados ou descritos como sendo tacanhos. Existem milhares de muçulmanos no Ocidente, assim como existem milhares de indivíduos de outras tradições religiosas no “mundo muçulmano”. Existem relações subjacentes entre estes mundos, supostamente separados, e que se manifestam nos alicerces mais profundos das suas culturas, da mesma forma que o renascer permanente da religiosidade está no íntimo de ambas e é observável ao longo das suas histórias.
O objectivo da religião é a piedade e uma consequência temporal da piedade é a constante transformação do desejo individual e colectivo nos valores e ética que são, universalmente, acalentados por todos os seres humanos. Dada esta relação entre a piedade e o tempo, se for louvada a ética e os valores, qualquer indivíduo de boa vontade, seja ou não ocidental, deverá sentir-se encorajado pela vertente da doutrina islâmica que apoia o culto da piedade através da prática religiosa e faz sobressair no praticante uma ética inter-humana, também partilhada pelas tradi- ções judaica, cristã ou outras.
Nessa ordem de ideias, podemos encontrar semelhanças entre todas as culturas e religiões do sistema teocêntrico. Com efeito, até nas culturas que, aparentemente, estão em conflito podem encontrar-se bases comuns. E este é um conceito que está indiscutivelmente presente no Alcorão, assim como a concepção de que as instituições de poder executivo, legislativo e judicial devem manter-se neutrais, mas, simultaneamente, reconhecendo a divindade e cultivando a piedade e a santidade, independentemente do procedimento formal que seja escolhido para o fazer (seja cristão, budista, islâmico, etc.). O objectivo destas instituições deve ser acompanhar o entendimento operacional do governo, tal como defendem os princípios do Alcorão.
Estes foram os princípios criados pelo Profeta Muhammad (a paz esteja cm ele) e segundo os quais ele próprio e os seus companheiros viveram.
Embora possam ser deslindadas semelhanças, as culturas do Oriente conservaram uma essência mais teocêntrica nas suas religiões, enquanto as culturas ocidentais advogam religiões progressivamente mais seculares. A concepção ideológica de um governo e sociedade sadios tem por base a aplicação da Sharia do próprio Ocidente, um código de leis definido pelo Alcorão que adopta o pluralismo. Se essa vertente da Sharia é ou não posteriormente representada, protegida e apoiada pelo forças do poder nacional dominante ou pelos agentes do poder geopolítico transnacional é uma questão totalmente diferente.
O carimbo do Ocidente, que tem por base o humanismo secular, que considera a expressão pública da fé ou a menção de Deus uma imposição perniciosa da religião, é incompatível com o paradigma islâmico. Ainda assim, espera-se que os muçulmanos do Ocidente obedeçam ao sistema de leis e costumes do país onde se encontram. Dando um exemplo exagerado, se houvesse uma lei que decretasse que a prática religiosa e a referência a Deus deveria passar a ser mantida apenas na esfera privada, o muçulmano deveria obedecer, pela lei da ética ditada pela Shari’a, ou então, deveria encontrar outro local para viver.
No Mundo Muçulmano, tal como no restante terceiro mundo, existem imposições dos regimes de clientelismo e aristocracia colectivos ocidentais que se manifestam através do uso de operações de guerra declaradas ou dissimuladas. Com a auto-determinação enfraquecida, muitos segmentos da população são naturalmente prejudicados pelas consequências nocivas a nível sócio-político e económico, sentindo -ss profundamente lesados. Quando esta população do “mundo muçulmano” se expressa intelectual e verbalmente contra as injustiças que são verdadeiramente reais, fá-lo através da fraseologia e paradigmas intelectuais da Shari’a, ética que lhes promete o direito à vida, liberdade, propriedade, segurança e a distribuição justa da riqueza e oportunidades. A Shari’a tem base na religião, por isso, o revivalismo religioso neste contexto é análogo aquele que está presente na exigência de um determinado “direito constitucional”, feita por um ocidental, perante uma hipotética opressão de carácter sócio-político ou financeiro. Vários movimentos reaccionários têm base nesta dinâmica. A relação entre as actuais operações de guerra e os crimes atribuídos a esses diferentes grupos, por um lado, e as empresas internacionais e os interesses ocidentais, por outro, torna necessária uma reflexão mais profunda.
A religião, quando é praticada com autenticidade, cria, por definição, pontes entre os seus praticantes, independentemente do tipo de religião que pratiquem. O Alcorão refere explicitamente este fenómeno em vários versículos. Uma das teses mais inaptas (da qual mesmo os religiosos melhor intencionados são vítimas) é a tese que defende que existe algo nas religiões autênticas (seja qual for a sua forma) que se torna na causa principal dos conflitos que ocorrem ao longo da linha que separa as várias religiões. Defender esta tese é o mesmo que argumentar que é algo de inerente à existência de várias raças e etnias que causa o conflito sectário a nível racial e étnico.
O fanatismo religioso, racial, étnico ou qualquer outra forma de fanatismo é, por definição, uma depravação psicológica. Embora a religião, a raça e a etnia estejam semanticamente associadas de uma forma existencial à sua respectiva forma de fanatismo, estas características não são, em si próprias, a causa de qualquer forma do mesmo. Um judeu devoto, um cristão ou um muçulmano terão, ideologicamente, o mesmo tipo de comportamento face à sua ética inter-pessoal. As formas de veneração podem variar, mas o comportamento que um cristão devoto, um judeu, hindu, persa ou budista, terá em relação ao próximo será idêntico.
Todos os seres humanos, sejam teocêntricos ou teofóbicos, desejam viver a sua vida tendo os seus direitos salvaguardados e sendo livres para levarem a cabo a sua jornada numa sociedade pacífica e ordeira. E é este o elo de ligação entre os religiosos e os não-religiosos. Existe um substrato próprio do ser humano que é comum a todas as pessoas, culturas e religiões deste mundo. Uma campanha pública massiva deve ser desenvolvida no sentido de derrubar as barreiras existentes entre os “dois mundos”. Devemos encorajar o jornalismo honesto e devemos também promover a educação e o entendimento culturais. Está na altura de pararmos de procurar diferenças e de começar a prestar atenção às semelhanças.