Prezados Irmãos, Assalamu Alaikum:
Há um milagre e um enigma na História Muçulmana que não podem ser logicamente explicados.
Alguns muçulmanos mostram-se desconfiados quando o assunto da coexistência vem à baila. Uns pensam que a mesma implica abdicar da Lei Islâmica, enquanto outros julgam-na um embuste enganador com um de dois objectivos: privar por completo o Islão dos seus princípios ou introduzir na crença e princípios islâmicos regras de outras fés e credos.
Outra razão que explica o cepticismo muçulmano relativamente ao tema da coexistência é o facto de a mesma ser considerada como algo que teve origem no Ocidente e que foi engendrado pelo mundo ocidental, sendo promovido por ele como uma forma de denegrir a cultura islâmica e os seus valores, com o intuito de fazer do mundo muçulmano uma cópia do ocidente.
Embora tenhamos de respeitar essas reservas e sentimentos, a verdade é que o conceito da coexistência é, na sua essência, algo que é defendido pelos ensinamentos islâmicos e que é atestado pelos textos sagrados.
Não devemos desconfiar do termo “coexistência” apenas porque algumas pessoas o usam com maus propósitos. Também não devemos preocupar-nos em demasia com questões de terminologia, pois o que nos interessa realmente é o significado da palavra. Devemos adoptar uma perspectiva razoável, aceitar o que é bom e rejeitar aquilo que é condenável.
Devemos adoptar o princípio que diz: “Os muçulmanos buscam a palavra verdadeira. Quando um muçulmano encontra essa palavra, tem maior legitimidade para a aceitar.” [sunan al-Tirmidhi – al-Tirmidhi considera esta narração invulgar].
Ter uma visão pessimista em relação à coexistência, com base na crença de que pomos em risco os princípios essenciais da nossa religião por adoptarmos outros credos a par do nosso, ainda que estes pareçam contraditórios, é uma noção claramente errada.
Allah
diz-nos:”Credes numa parte da Escritura e rejeitais a outra?” (Surah al-Baqarah, 2:85). Além disso, a coexistência tem um outro significado muito positivo, sendo, essencialmente, um dos valores morais mais nobres que podem ser aplicados à comunicação, ao diálogo e ao facto de aceitarmos trabalhar com outros no sentido de alcançarmos a paz e a prosperidade mútua. Depois de reconhecermos a existência de diferenças entre nós, torna-se necessário respeitá-las e este saber está ligado ao pluralismo. Foi a noção de coexistência que o Islão concebeu. O Alcorão refere-se-lhe de diversas formas, sendo muitas delas mais claras e precisas do que o conceito moderno de “coexistência”.
Por exemplo, quando Allah diz: “Ó humanidade! Nós vos criamos de macho e fêmea e vos dividimos em tribos e nações, para que se conheçam uns aos outros.” (Surah Al Hujurat, 49:13).
Quando Allah diz “conhecer uns aos outros” não se está a referir apenas a conhecer um determinado nome ou tribo, está a referir-se a toda a humanidade, implicando a expressão, numa interpretação mais lata, a adopção da troca de saberes e aprendizagens e toda uma série de interacções positivas.
Este significado é reafirmado quando Allah diz: “Não permitais que o ódio das pessoas que em determinada ocasião vos expulsaram da Mesquita Sagrada vos leve à transgressão (e à hostilidade da vossa parte). Ajudai-vos uns aos outros na virtude e na piedade, mas não o façais em pecado e na hostilidade. E temei a Allah, pois Allah é severo no castigo”. (Surah al-Ma ‘idah, 5:2).
O Islão promove o conceito de nos ajudarmos uns aos outros e de cooperarmos naquilo que é benéfico, independentemente do facto de a outra parte concordar ou não connosco naquilo que é essencial. O que realmente interessa é a nossa cooperação para a concretização de algo legítimo, algo que esteja em concordância com os ditames da virtude e que não seja um pecado, injustiça ou transgressão. O conceito de nos conhecermos e ajudarmos uns aos outros é positivo para todos. Estes são valores que levam ao melhoramento da humanidade. Ao agimos em concordância com eles, os outros aproximam-se mais de nós e do Islão.
As pessoas são diferentes umas das outras e vivem em circunstâncias diversas; este é um dado adquirido. Allah destinou que assim fosse, tendo afirmado: “Se o teu Senhor quisesse teria feito da humanidade um povo único; porém, jamais deixarão de existir diferenças entre os homens, a não ser naqueles que Allah agraciou com a Sua Misericórdia…” (Surah Hud, 11:118-119).
Aceitar a existência de divergências e a multiplicidade de opiniões não implica a não diferenciação entre o correcto e o errado, entre o bem e o mal. Pelo contrário, a noção de divergência pressupõe a opo- sição entre o correcto e o errado. A coexistência não invalida que promovamos os nossos valores ou que nos tenhamos de abster de defender as nossas opi- niões. Podemos continuar a discutir com os outros, mas com toda a educação, mostrando o que está certo e proibindo o que está errado. Este é um valor que é considerado essencial na nossa fé.
A coexistência impele-nos a cooperar pacificamen- te com o outro para benefício e bem-estar mútuos e para que possamos viver como vizinhos, graças à força dos valores universais que partilhamos e que nos dão a oportunidade de dialogar e de trocarmos ideias.
O desejo do crente é aperfeiçoar as circunstâncias. O crente é alguém que se caracteriza por dizer o que está correcto e proibir aquilo que é errado, dando o seu melhor no sentido de promover a verdade e refutar a falsidade, de fomentar o conhecimento e dissipar a ignorância, agindo sempre da forma mais razoável para o conseguir. Um dos piores comportamentos que um indivíduo pode ter é assumir-se como o dono da verdade, seja qual for a designação que dê a si próprio, tendo o seu ponto de vista como absolutamente correcto ao ponto de se considerar no direito de julgar todas as outras pessoas. Esta atitude é, em si própria, um erro grave e algo que radicalmente se opõe aos ensinamentos islâmicos. Para o Islão todas as vidas são sagradas, sejam de muçulmanos ou de não-muçulmanos, desde que desejem viver em paz. Tem sido este o exemplo praticado ao longo da história.
A sociedade de Medina (ár. Madinah), a primeira cidade do mundo muçulmano e através da qual o Islão se difundiu por todo o mundo, ilustra bem a coexistência proposta pelo Islão. Com efeito, assim que o Islão se tornou forte e independente, Allah decidiu que Medina não deveria ser apenas uma cidade muçulmana, mas um local partilhado por pessoas de outras fés (judeus e pagãos) e também por hipócritas e por muçulmanos cuja fé era débil. Todos viveram lado a lado numa pequena cidade.
A coexistência é a forma que permite que todos os povos do mundo possam cooperar e trocar conhecimentos em prol da humanidade que partilhamos e de uma existência civilizada. Partilhamos as experiências que nos permitem ter uma vida melhor na Terra. Na verdade, essa é a forma que temos para que juntos possamos promover os valores que todos defendemos e o conhecimento universal. É, também, neste tipo de conjuntura que poderemos ter a oportunidade de chamar outros para ouvir a mensagem do Islão.
Não quer isto dizer que apenas um dos lados terá o direito de pregar a sua fé e ideias à outra parte. O que se pretende é criar a oportunidade para o surgimento de um diálogo construtivo (num contexto de coexistência a nível mundial) para a discussão de assuntos de importância religiosa bem como de interesse global.
Os Companheiros do Profeta Muhammad (que a paz e bençãos de Allah estejam com ele) perceberam perfeitamente que acreditavam numa religião que era substancialmente diferente de todas as outras religiões que existiam à sua volta. Essas diferenças acentua- ram-se ainda mais, cravadas por pormenores relativos às crenças, que ficaram registados nas escrituras de cada uma dessas religiões e que eram expressos nos seus diferentes ritos de devoção. Ainda assim, era reconhecida a existência entre essas religiões de um espaço para o diálogo, para além dos interesses mundanos que, por vezes, partilhavam entre si.
Com efeito, podemos constatar que Allah diz: “Dize-lhes: Ó adeptos do Livro! Vinde, para chegarmos a um acordo comum, entre nós e vós: comprometamo-nos, formalmente, a não adorar senão a Deus (ár. Allah), a não Lhe atribuir parceiros e a não nos tomarmos uns aos outros por senhores, em vez de Deus. Porém, caso se recusem, dize-lhes: testemunhai que somos submissos à Vontade de Deus”. (Surah al Imram, 3:64).
Apesar de os Mensageiros de Allah terem sido os homens que possuíram a maior fé de todas as pessoas que já viveram neste mundo, eles viveram junto dos seus clãs que demonstraram uma descrença categórica. Noé (que a paz esteja com ele) viveu entre o seu povo 950 anos.
Allah
diz: “(Noé) disse: “Ó Senhor meu! Tenho predicado ao meu povo noite e dia; mas as minhas predicações apenas os afastaram ainda mais (da verdade). E cada vez que os convocava ao arrepen- dimento, para que Tu os perdoasses, tapavam os ouvidos com os dedos e se envolviam com as suas vestimentas, obstinando-se no erro e ensoberbecendo-se grotescamente. Então, convoquei-os em voz alta; depois os exortei palatina e privativamente, dizendo-lhes: Inplorai o perdão do vosso Senhor, pois Ele é Indulgente…” (Surah Nuh, 71:5-10). Pelo que acima foi citado, percebemos que Noé (que a paz esteja com ele) os tentou atrair ao Islão, (submissão à Vontade de Deus) de uma forma objectiva e razoável, apelando ao seu bom-senso: tudo isto faz parte da chamada coexistência.
A coexistência não implica que tenhamos de negar a nossa opinião pessoal e muito menos que tenhamos de pôr de parte as nossas crenças religiosas. As nossas opiniões pessoais fazem parte da nossa identidade e ninguém nos pode obrigar ou coagir a mudá-las. No final, as nossas opiniões continuarão a ser isso mesmo, opiniões pessoais. O que se pretende realmente é pôr fim ao fanatismo sufocante e à agitação irreflectida, pois do que, na verdade, precisamos é de uma comunicação franca, procurando atrair as pessoas, servindo-nos daquilo que temos de melhor. A coexistência requer, pois, o abandono da obstinação relativamente às nossas opiniões e abstermo-nos de forçar outros a aceitarem-nas; não nos impõe o abandono das nossas crenças ou a obrigação de considerar que todos os pontos de vista estão correctos, porque existe uma enorme diferença entre esses dois extremos.
E Allah é quem sabe melhor.